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OPINIÃO ECONÔMICA
A velhice da Terra
RUBENS RICUPERO
No crepúsculo da Idade
Média, as pessoas sentiam
que a Terra envelhecia e agonizava. As estruturas do mundo natural e as da sociedade adoeciam,
corroídas por verme implacável. A
Peste Negra, as fomes, as revoltas
de camponeses afogadas em sangue, a dança macabra dos afrescos
do Campo Santo de Pisa evocam
sempre a Morte que dá o compasso e conduz o ritmo, como no final
de "O Sétimo Selo", de Bergman.
Escrevendo de Genebra, depois
de viagem por meia Europa, encontro, menos a grandeza trágica,
sentimento similar de um mundo
cansado e perplexo, sem alegria
nem vitalidade. Voltam a abalar-se as estruturas físicas e biológicas.
O medo pertinaz da gripe aviária
que se aproxima soma-se ao dos
atentados terroristas nos locais da
vida cotidiana, ao temor das insurreições nos guetos de imigrantes. Furacões e terremotos recrudescem a miséria dos miseráveis e
até o Amazonas seca, vaporizado
pelos incêndios das florestas.
Aonde quer que se olhe, a política oferece o mesmo panorama gris
de decadência e fim de reino. A
França de Chirac, ferida de morte
quando Le Pen alijou Jospin nas
eleições de 2002, não consegue
acabar de morrer. Arrasta-se entre
a rejeição da Constituição européia, a defesa obstinada do protecionismo agrícola, as explosões e
incêndios dos subúrbios, a tentação populista ou fascista de direita, Sarkozy ou Le Pen, no vácuo
criado pelo naufrágio dos socialistas e das esquerdas.
Se, na Alemanha, Schröeder termina carreira melancólica, deixando o país mais dividido do que
nunca, impasse semelhante caracteriza a Itália de Berlusconi, onde
nem as forças de uma das piores
direitas do continente nem as de
um frouxo e vago centro-esquerda
prometem a hegemonia cultural e
política capaz de dar rumo à sociedade. Blair tampouco está longe da porta de saída, desmoralizado pelas mentiras da guerra do
Iraque, o papel subalterno e ineficaz perante os americanos, o
abandono da parte mais consciente da própria bancada.
O que dizer de Bush, após o fiasco do Katrina, o pântano fatídico
do Iraque, a queda livre nas pesquisas, o fracasso de Mar del Plata? Pode alguém surpreender-se
de que, com tais lideranças, não se
logre avançar nas negociações comerciais? Nem existe obviamente
consolo em voltar o olhar para a
pátria, "que está metida no gosto
da cobiça e na rudeza de uma austera, apagada e vil tristeza".
Mas será a Terra que envelhece
ou são os homens, que na Europa
perderam até a capacidade de repor a população que se extingue?
É pena, pois os que chegam ao fim
eram na certa os melhores. Começamos a viagem por minúsculo
"paese" do Piemonte, Pontestura,
onde fomos ao aniversário (86º)
de dom Aldo Moggiano, ex-arcebispo de Boa Vista. Lá, na noite do
dia 1º, em companhia dos velhos
irmãos, de gente simples da vizinhança, recitava-se o rosário pela
festa de Finados. Há meio século
eu não escutava as preces em italiano que ouvia de minha "nonna". Apesar da presença do bispo,
era a velha irmã que conduzia as
orações e, ao final, foi o outro irmão, Giuseppe, "contadino" inteligente e informado que, aos 80
anos, passa os dias a arar a terra
com seu trator, que recitou de cor
o De Profundis. Era a velha Europa de uma piedade cristã popular
e profunda que víamos quase como relíquia arqueológica.
De lá, fomos visitar familiares
em Trento, o cemitério ancestral
cercado do anfiteatro das montanhas, o tio quase nonagenário, ex-missionário na Amazônia, hoje
retirado nas montanhas do Tirol
do Sul, cruzamos passos lunares a
3.000 metros, os prados verdejantes impecáveis, as aldeias tirolesas
e da Engadina, saídas de um calendário colorido de paisagens alpinas enferrujadas pelo laranja do
outono. Ali, a Terra, quase sem
gente, continua fresca e sem rugas.
Por acaso tinha comigo o último
livro de W. G. Sebald, no qual ele
fala de um de meus escritores favoritos, o velho Hebel dos almanaques do início do século 19, da sua
maneira de enxergar a vida humana desfigurada pela violência
como se a olhasse de um telescópio
cósmico, de uma distância que
concilia compaixão e indiferença.
Na descrição do cometa de 1811,
dizia Hebel: "Durante a noite toda, ele foi como uma santa bênção
vespertina, como quando um padre percorre a casa de Deus e espalha o incenso, digamos como uma
boa e nobre amiga da Terra que se
enternece por ela como se quisesse
declarar: Um dia, fui também
uma terra como tu, cheia de borrascas de neve e de nuvens de tempestade, de asilos, de sopas populares e de sepulturas ao redor de
pequenas igrejas. Mas minha hora
derradeira passou e eis-me transfigurada em celeste claridade, e eu
gostaria muito de juntar-me a ti
mas não tenho direito, para não
ser de novo manchada pelo sangue de teus campos de batalha".
O cometa de Hebel lembra-nos
de que, um dia, a Terra passará e
não será mais que uma estrela luminosa. Antes, porém, passaremos
nós, nossas civilizações brilhantes
e pretensiosas, nossas querelas vãs,
nossos políticos corruptos e mesquinhos. O que dará então luz a
esse gigantesco rochedo inanimado no espaço não virá dos grandes
deste mundo, mas das vidas simples e obscuras dos que adormeceram em paz recitando o De Profundis.
Rubens Ricupero, 68, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto
Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das
Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.
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