São Paulo, domingo, 13 de dezembro de 1998

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VISÃO DE FORA
O papel potencial do Mercosul

MICHAEL PETTIS
Nos meus dois artigos anteriores (18/10 e 15/11, Dinheiro, pág. 2-2), expus os argumentos históricos em favor do protecionismo e da estratégia da "indústria" nascente. Ainda assim, quaisquer que sejam os méritos do argumento e a favor da defesa da indústria nascente, há economistas que alegam que os mercados individuais latino-americanos são pequenos demais para permitir grande número de concorrentes.
Mas concorrência é um pré-requisito se não se deseja que o protecionismo conduza ao tipo de monopólio ineficiente e atrasado que caracterizou o protecionismo latino-americano ao longo de sua história. Se a teoria fosse verdade, e já que não haveria vantagem em proteger os locais contra a concorrência de países com nível de produtividade semelhante, isso sugere que a melhor política seria expandir os pequenos mercados "domésticos" por meio da criação de zonas de livre comércio entre grupos de países de nível médio de renda, como faz o Mercosul.
Sob uma união alfandegária dessa espécie, o mercado pode decidir de forma livre e eficiente como os recursos são alocados dentro de cada país; isso é crucial, já que livre competição e especialização parecem ser os fatores que conduzem ao crescimento da produtividade. Um arranjo como o Mercosul poderia proteger seletivamente o grupo de países-membros contra a concorrência em setores onde se crê que um ganho rápido de produtividade possa ser conquistado. Mas o protecionismo teria de ser seletivo. Por exemplo, não poderia restringir setores altamente avançados, como computadores ou telecomunicações, dos quais o crescimento da produtividade de outras áreas pode depender.
Com essas exceções, porém, os mercados seriam livres e abertos às ações estratégicas de qualquer investidor ou produtor individual. Regras e estruturas que restringem a competição seriam eliminadas. Além disso, o acordo de comércio regional poderia ser usado para solidificar as reformas econômicas liberais e impedi-las de cair devido à pressão de poderosos grupos de interesse domésticos. Mais importante, governos locais permitiriam que os negócios se desenvolvessem livremente e evitariam a tentação de administrar o processo.
A meta não é eliminar os confusos processos do capitalismo, mas sim encorajá-los e ao mesmo tempo impedir que desvantagens momentâneas de produtividade sejam congeladas permanentemente devido ao comércio internacional. Em outras palavras, o objetivo seria replicar o crescimento rápido e caótico que os Estados Unidos obtiveram no começo do século 19, por trás de suas barreiras de proteção contra o comércio britânico.
Por fim, ao reduzir a tendência de especialização baseada nas atuais vantagens comparativas, países de renda média como o Brasil poderiam reduzir sua sensibilidade a variações nos preços das commodities, que é tipicamente sua área mais vantajosa. Historicamente, um dos efeitos que acompanham a proteção à indústria é uma transferência de riqueza do setor de commodities para o setor industrial, no qual a renda é distribuída de forma mais ampla entre as classes sociais.
Ao criar uma base de consumidores local, o protecionismo pode ajudar a reduzir o impacto, historicamente devastador, das contrações na liquidez global e dos declínios nos preços das commodities (que é o que parece estar acontecendo hoje). As proteções desviam o influxo de capital estrangeiro, que parece aumentar e diminuir quase independentemente das oportunidades de investimento doméstico, para o investimento de longo prazo, em lugar dos típicos picos de consumo de importados que caracterizam os booms latino-americanos.
Diferentemente do Nafta, sob o qual corporações mexicanas quase certamente perderão lugar para corporações dos EUA em quase todos os setores altamente produtivos, no Mercosul há, em geral, uma igualdade de níveis de produtividade que não deve resultar em uma reacomodação de indústrias de crescimento mais rápido em benefício de um país específico. É certo que podem ocorrer deslocamentos econômicos desconfortáveis, à medida que questões de economia de escala e vantagens locais façam com que empresas mudem de base, mas na média cada país terá ganhos que compensarão suas perdas.
Se um grupo de indústrias sofisticadas e de crescimento rápido sair da Argentina rumo ao Brasil, por exemplo, isso deixará um excedente de trabalhadores bem treinados na Argentina disponíveis para outros setores em crescimento. Já que a consequente alta na exportação de produtos brasileiros para a Argentina causará alta também na demanda brasileira por bens argentinos, as tendências se compensam. Ainda que essa troca de indústrias possa não resultar em compensações perfeitas, a região como um todo compartilhará os ganhos de eficiência causados por vantagens comparativas dentro da região, e essas melhoras provavelmente mais que compensarão quaisquer desequilíbrios regionais.
Provas dos benefícios do protecionismo regional talvez possam ser encontradas, ironicamente, em um estudo realizado dois anos atrás pelo Banco Mundial, que criticava exatamente as possibilidades de protecionismo implícitas no Mercosul. Em uma resenha sobre o estudo publicada em 23 de outubro de 1996, o "Wall Street Journal" alegava que "o Mercosul construiu um mundo artificial de crescimento econômico, onde indústrias ineficientes prosperam por trás de uma muralha de barreiras comerciais".
O estudo afirma que houve imenso ganho na indústria e no comércio regionais, mas critica o acordo porque, sem o protecionismo, a economia do Mercosul não seria capaz de resistir à competição estrangeira. Nas palavras de Alexander Yeats, autor do trabalho, o comércio intra-regional está "crescendo mais rapidamente para produtos onde não há evidência de que o Mercosul tenha alguma vantagem comparativa natural".
Mas, ironicamente, não há nada artificial quanto ao crescimento de produção no Mercosul. Dada a capacidade instalada excedente e o desemprego na região, esse aumento representa ganho real de riqueza. O mais importante é que se, ao longo do tempo, os produtores locais puderem aumentar a eficiência a um ponto que permita a eles competir internacionalmente, o resultado será um aumento sustentado e real na riqueza do Mercosul e uma alteração nas vantagens comparativas "naturais". Esse é precisamente o motivo básico do protecionismo e exatamente o mesmo caminho que os EUA e outros países hoje ricos seguiram historicamente.
O interessante é que no Mercosul a Argentina, com sua orientação maior para a exportação de commodities, desempenhou o papel do sul dos EUA, exportador de algodão, antes da Guerra Civil, contra o papel de "norte industrializado dos EUA" desempenhado pelo Brasil. Da mesma forma que no conflito econômico entre norte e sul dos EUA, no Mercosul a Argentina pressiona mais vigorosamente por mercados abertos, diante da posição mais protecionista dos brasileiros.
Para resumir, parece que, embora economistas e banqueiros em geral favoreçam o livre comércio para a América Latina, quanto a esse ponto a história parece conflitar seriamente com a teoria econômica de consenso. Para países menos desenvolvidos, tanto o livre comércio quanto economias fechadas e dirigistas têm desempenhos históricos medíocres, enquanto uma estratégia mista "hamiltoniana", envolvendo competição doméstica em um grande mercado protegido contra competidores estrangeiros produtivos, existe como uma alternativa comprovada para as autoridades.
Além disso, para os pequenos mercados da América Latina uma zona de livre comércio regional, com barreiras externas, pode ser uma maneira de tirar vantagem tanto dos benefícios econômicos indubitáveis da especialização conduzida pelo livre mercado quanto da proteção temporária a indústrias nascentes. Os acordos que estabelecem a zona de livre comércio ajudam a firmar as reformas de mercado e impedem os recuos preconizados pelos poderosos interesses domésticos.
À medida que as companhias competem internacionalmente, esses países provavelmente verão desregulamentação competitiva, reduções nos custos corporativos, rompimento de monopólios domésticos e o livre fluxo de capital internacional, que conduz o processo de investimento na América Latina. Mais: a proteção da zona de comércio regional vai defender os produtores locais contra os efeitos da competição unilateral contra produtores muito mais eficientes no mundo rico, um tipo de competição que jamais resultou em crescimento relativo para os pobres.
² Quem é MICHAEL PETTIS norte-americano, 39 anos, mestre em finanças, diretor do banco de investimentos Bear Stearns e professor-associado de finanças na Graduate School of Business da Columbia University (EUA).



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