São Paulo, domingo, 13 de dezembro de 1998

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LUÍS NASSIF
O martelo negro

Na semana passada, os jornais noticiaram a morte de Archie Moore, aos 88 anos, o maior meio- pesado da história, o homem que enfrentou e derrubou (antes de ser nocauteado) pesos-pesados como Rocky Marciano, e que perto dos 50 anos, desafiou o então imbatível Cassius Clay. E me lembrei do Luizão, o Luiz Ignácio, gigante de ébano, o "martelo negro", primeira glória do pugilismo nacional.
Eu tinha lá meus oito ou dez anos, o hábito de ouvir Moraes Sarmento no rádio de válvula e ler "O Cruzeiro" no quarto que ficava do lado de fora da nossa casa, em Poços de Caldas.
O Brasil começava a se internacionalizar, e eu agradecia diariamente a Deus por ter me permitido nascer no maior país do mundo. Por que maior? Bem, a extensão territorial, o Campeonato Mundial de Futebol de 1958, Carmem Miranda, Maria Esther Bueno, a Marinha de Guerra brasileira na guerra do Paraguai, Marta Rocha, Biriba, o rio Amazonas, Santos Dumont e Ademar Ferreira da Silva. Ah, e Ruy Barbosa que, pelo que me contavam, lá pelo começo do século tinha impressionando o mundo em um tal de tribunal de Haia, por sua cabeça grande e pela oratória. Depois, viera curtir o sucesso em Poços, tendo ficado muito impressionado com dois de nossos sábios locais, o prefeito Francisco Escobar e o dr. Pedro Sanchez de Lemos, que eu achava que era o dono da biblioteca municipal, mas depois me informaram que já tinha morrido quando meu pai era criança. E olha que o velho se casou tarde.
Eder Jofre começava a se destacar no pugilismo, mas ainda não tinha explodido. Explodiu tempos depois quando deu uma sova inesquecível no Ernesto Miranda, um argentino de pés de lebre, depois de passar um monte de assaltos correndo feito louco atrás dele. Estava mais para corrida da São Silvestre do que para luta de boxe. Até que Eder parou para tomar ar, Ernesto aproveitou para descansar perto dele, que nem amigo de bar, e levou um petardo ao pé do ouvido que encerrou a luta.
Antes disso, o grande peso-galo da época era o Pedro Galasso, que fui conhecer um dia apresentando-se na quadra da Associação Atlética Caldense, e que me decepcionou pela pequena estatura, metade do tamanho do meu pai. Daí me explicaram que peso-galo é assim mesmo, só maiorzinho que peso-mosca, isso antes de inventarem esse anão de jardim chamado minimosca.
Mas meu ídolo nacional era mesmo o Luizão, esse sim, lutador tamanho-família, negro atrevido que tinha por hábito sair com as loiras mais cobiçadas do planeta e quebrar a cara de leão-de-chácara de boates que não aceitavam negros. Tudo devidamente documentado pelo "O Cruzeiro".
Admirava-me seu porte de deus africano, a petulância de invadir os redutos brancos e impor sua presença, e seu queixo empinado. O queixo, aliás, era a parte mais destacada de Luizão, porque identificava sua petulância, e porque era de vidro. Era que nem o Maguila. Bastava uma borboleta pousar no queixo, para deixar nosso herói meio atordoado.
Desde que não entrasse queixo no meio, cada luta de Luizão era uma festa, que eu acompanhava pelo rádio, nos comentários de Paulo Planet Buarque, e, depois, pelas reportagens de "O Cruzeiro". A revista abria página inteira para mostrar os adversários de Luizão beijando a lona, como se dizia então e, acho, que até hoje. E, em foto de página inteira, qualquer adversário normal vira gigante. Só não gostava quando Luizão ia lutar com um uruguaio de nome Dagomar Martinez, se não me engano, que era a encarnação do capeta, sujeito mal-intencionado como seus conterrâneos da seleção de 50, que sempre apelava, tratando de encaixar murros traiçoeiros na ponta do queixo do Luizão. Quando acertava, deixava meu ídolo esticado no ringue, durinho e com os olhos revirados.
Pois me lembrei de Luizão, porque Archie Moore desembarcou em São Paulo, em um dia qualquer dos anos 50, já em fim de carreira, para uma luta exibição. Escalado para o teste, o Luizão. Durante semanas a imprensa esportiva tratou Moore como uma mera escada, que permitiria a escalada de Luizão ao panteão da glória do pugilismo mundial.
Nem sei onde foi a luta, se na "caixa de fósforo" do Pacaembu, se no Ginásio de Esportes do Ibirapuera, nem sei se li na "Gazeta Esportiva" da época ou soube depois. Só sei que por dois assaltos, Luizão girou em torno de Archie Moore como um filhote de alce, saltitante, em torno de um leão sonolento. Era pulinho daqui, e jab, pulinho daqui, e jab. E a torcida crescendo. Quando Luizão conseguiu acertar o queixo de Moore, de leve, o estádio quase veio abaixo. Luizão inflamou-se e acertou mais um. Aí o leão achou que já tinha justificado seu cachê, e foi direto onde? No queixo do Luizão. Fim de luta.
Muitos anos depois, lá por 1974, conheci meu ídolo como contínuo da Secretaria dos Transportes em São Paulo, sonadinho da silva e reclamando que seu técnico, Kid Jofre, tinha impedido sua ida para os Estados Unidos, com medo que virasse carne para leão.
Nos anos seguintes, procurei em vão a revanche de Luizão. João Mendonça acabou derrotado pela sífilis, Abrahão de Souza pelo mal de Chagas, Rosemiro "Pelé" dos Santos pelas drogas, José de Lima pela fome, e Fernando Barreto pela vida. Com exceção de Eder Jofre, todos foram derrotados, um a um, pela vida, pelas endemias, pela subnutrição, pela má formação, por essa composição de tragédias que os economistas não computam no chamado custo Brasil.
Quando vejo aqueles cubanos campeões, com crise e tudo em Cuba, dá uma inveja danada. Mas um dia chegamos lá.
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E-mail:lnassif@uol.com.br



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