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LUÍS NASSIF
O martelo negro
Na semana passada, os jornais
noticiaram a morte de Archie
Moore, aos 88 anos, o maior meio-
pesado da história, o homem que
enfrentou e derrubou (antes de ser
nocauteado) pesos-pesados como
Rocky Marciano, e que perto dos
50 anos, desafiou o então imbatível Cassius Clay. E me lembrei do
Luizão, o Luiz Ignácio, gigante de
ébano, o "martelo negro", primeira
glória do pugilismo nacional.
Eu tinha lá meus oito ou dez
anos, o hábito de ouvir Moraes
Sarmento no rádio de válvula e ler
"O Cruzeiro" no quarto que ficava
do lado de fora da nossa casa, em
Poços de Caldas.
O Brasil começava a se internacionalizar, e eu agradecia diariamente a Deus por ter me permitido
nascer no maior país do mundo.
Por que maior? Bem, a extensão
territorial, o Campeonato Mundial de Futebol de 1958, Carmem
Miranda, Maria Esther Bueno, a
Marinha de Guerra brasileira na
guerra do Paraguai, Marta Rocha,
Biriba, o rio Amazonas, Santos
Dumont e Ademar Ferreira da Silva. Ah, e Ruy Barbosa que, pelo
que me contavam, lá pelo começo
do século tinha impressionando o
mundo em um tal de tribunal de
Haia, por sua cabeça grande e pela
oratória. Depois, viera curtir o sucesso em Poços, tendo ficado muito
impressionado com dois de nossos
sábios locais, o prefeito Francisco
Escobar e o dr. Pedro Sanchez de
Lemos, que eu achava que era o
dono da biblioteca municipal, mas
depois me informaram que já tinha morrido quando meu pai era
criança. E olha que o velho se casou tarde.
Eder Jofre começava a se destacar no pugilismo, mas ainda não
tinha explodido. Explodiu tempos
depois quando deu uma sova inesquecível no Ernesto Miranda, um
argentino de pés de lebre, depois
de passar um monte de assaltos
correndo feito louco atrás dele. Estava mais para corrida da São Silvestre do que para luta de boxe.
Até que Eder parou para tomar ar,
Ernesto aproveitou para descansar perto dele, que nem amigo de
bar, e levou um petardo ao pé do
ouvido que encerrou a luta.
Antes disso, o grande peso-galo
da época era o Pedro Galasso, que
fui conhecer um dia apresentando-se na quadra da Associação
Atlética Caldense, e que me decepcionou pela pequena estatura, metade do tamanho do meu pai. Daí
me explicaram que peso-galo é assim mesmo, só maiorzinho que peso-mosca, isso antes de inventarem esse anão de jardim chamado
minimosca.
Mas meu ídolo nacional era mesmo o Luizão, esse sim, lutador tamanho-família, negro atrevido
que tinha por hábito sair com as
loiras mais cobiçadas do planeta e
quebrar a cara de leão-de-chácara
de boates que não aceitavam negros. Tudo devidamente documentado pelo "O Cruzeiro".
Admirava-me seu porte de deus
africano, a petulância de invadir
os redutos brancos e impor sua
presença, e seu queixo empinado.
O queixo, aliás, era a parte mais
destacada de Luizão, porque identificava sua petulância, e porque
era de vidro. Era que nem o Maguila. Bastava uma borboleta pousar no queixo, para deixar nosso
herói meio atordoado.
Desde que não entrasse queixo
no meio, cada luta de Luizão era
uma festa, que eu acompanhava
pelo rádio, nos comentários de
Paulo Planet Buarque, e, depois,
pelas reportagens de "O Cruzeiro".
A revista abria página inteira para mostrar os adversários de Luizão beijando a lona, como se dizia
então e, acho, que até hoje. E, em
foto de página inteira, qualquer
adversário normal vira gigante. Só
não gostava quando Luizão ia lutar com um uruguaio de nome Dagomar Martinez, se não me engano, que era a encarnação do capeta, sujeito mal-intencionado como
seus conterrâneos da seleção de 50,
que sempre apelava, tratando de
encaixar murros traiçoeiros na
ponta do queixo do Luizão. Quando acertava, deixava meu ídolo esticado no ringue, durinho e com os
olhos revirados.
Pois me lembrei de Luizão, porque Archie Moore desembarcou
em São Paulo, em um dia qualquer dos anos 50, já em fim de carreira, para uma luta exibição. Escalado para o teste, o Luizão. Durante semanas a imprensa esportiva tratou Moore como uma mera
escada, que permitiria a escalada
de Luizão ao panteão da glória do
pugilismo mundial.
Nem sei onde foi a luta, se na
"caixa de fósforo" do Pacaembu, se
no Ginásio de Esportes do Ibirapuera, nem sei se li na "Gazeta Esportiva" da época ou soube depois.
Só sei que por dois assaltos, Luizão
girou em torno de Archie Moore
como um filhote de alce, saltitante,
em torno de um leão sonolento.
Era pulinho daqui, e jab, pulinho
daqui, e jab. E a torcida crescendo.
Quando Luizão conseguiu acertar
o queixo de Moore, de leve, o estádio quase veio abaixo. Luizão inflamou-se e acertou mais um. Aí o
leão achou que já tinha justificado
seu cachê, e foi direto onde? No
queixo do Luizão. Fim de luta.
Muitos anos depois, lá por 1974,
conheci meu ídolo como contínuo
da Secretaria dos Transportes em
São Paulo, sonadinho da silva e reclamando que seu técnico, Kid Jofre, tinha impedido sua ida para os
Estados Unidos, com medo que virasse carne para leão.
Nos anos seguintes, procurei em
vão a revanche de Luizão. João
Mendonça acabou derrotado pela
sífilis, Abrahão de Souza pelo mal
de Chagas, Rosemiro "Pelé" dos
Santos pelas drogas, José de Lima
pela fome, e Fernando Barreto pela vida. Com exceção de Eder Jofre,
todos foram derrotados, um a um,
pela vida, pelas endemias, pela
subnutrição, pela má formação,
por essa composição de tragédias
que os economistas não computam no chamado custo Brasil.
Quando vejo aqueles cubanos
campeões, com crise e tudo em Cuba, dá uma inveja danada. Mas
um dia chegamos lá.
²
E-mail:lnassif@uol.com.br
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