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São Paulo, domingo, 14 de setembro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Rebeldes por uma boa causa

RUBENS RICUPERO

A pesar de ter estado presente a quase todas as reuniões ministeriais do Gatt (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio) e da OMC (Organização Mundial do Comércio) desde 1987 -ou talvez por isso mesmo-, não sou capaz de prever como terminará a Conferência Ministerial de Cancún, inaugurada na última quarta-feira, em que escrevo. Pronunciei nessa manhã, na sessão de abertura, o discurso do secretário-geral da ONU, Kofi Annan, e tenho de escrever este artigo antes de partir logo mais.
Era tensa a atmosfera da sala de convenções, pois reinava ainda incerteza sobre o grau de consideração que a direção da conferência dispensaria à proposta sobre agricultura tabulada pelo Brasil e uma vintena dos mais importantes países em desenvolvimento. Fiquei impressionado, na véspera, pelo espetáculo da coletiva de imprensa, após a primeira reunião desse grupo em nível de ministros. Na mesa principal, nosso ministro, Celso Amorim, que teve a iniciativa de organizar o encontro, presidia ao lado dos gigantes dos três continentes do mundo em desenvolvimento: China, Índia, África do Sul, mais Argentina, México, Chile, praticamente a América Latina inteira, a Tailândia, as Filipinas, o Paquistão, o Egito.
Não me recordo de nada semelhante em minha carreira. Vários dos ministros lembraram que estavam ali representados mais da metade da população mundial, 65% dos agricultores, quase 50% da produção rural, a maioria dos pobres do planeta. Era em nome deles que exigiam respeito à posição apresentada. No passado e no presente, tem havido pronunciamentos de grupos até maiores, como o dos 77 ou o Movimento Não-Alinhado. Eram, no entanto, documentos de caráter geral, denominadores mínimos diluídos, gestos declaratórios. O que é inédito, desta vez, é o aspecto concreto da união construída em torno de proposta sólida, profissional, sobre tema complexo e que costuma dividir até os países em desenvolvimento.
É essa dimensão proativa, pronta a oferecer alternativa viável ao unilateralismo dos poderosos, que justifica afirmar que, mesmo dizendo não, esses países estão demonstrando atitude eminentemente positiva. O que os inspira não é, com efeito, uma estratégia meramente defensiva, típica dos que sabem o que não querem, mas não sabem o que deveriam querer. São eles que reclamam agora a liberalização do comércio, a abertura dos mercados, a supressão dos subsídios que premiam os ineficientes e punem os competitivos. Todos esse princípios fluem da mais cristalina fonte liberal, brotados puros da pena de Adam Smith e David Ricardo, postulados que as nações avançadas adoram pregar com farisaica auto-suficiência nas áreas sofisticadas de indústria e serviços, em que detêm superioridade indiscutível, mas escamoteiam ou desconhecem nos setores não- competitivos de suas economias.
Nós, que habitualmente nos encontramos do lado errado do chicote, nesse caso estamos com a mão no cabo. Conforme dizem os americanos, ocupamos o "moral high grounds", isto é, temos a posição vantajosa do ponto de vista moral. Ademais, os proponentes da liberalização agrícola são os que encarnam a cultura da OMC, cuja razão de ser é promover um comércio livre de todas as barreiras. Negativos aqui não são os que dizem não a uma proposta para negar ou postergar indefinidamente a liberalização, mas os que se apressuram a murmurar sim ao que um filme de Hollywood chamou de uma "proposta indecente". Como aquela dama que, no dizer de Dorothy Parker, "sabia falar 18 línguas, mas era incapaz de dizer não em qualquer uma delas"...
É mais que tempo para corrigir o desequilíbrio fatal introduzido no sistema comercial quando o Gatt aprovou, no início dos 50, um "waiver" ou exceção para a agricultura, a pedido dos EUA. Agravou-se a assimetria quando, pouco depois, um julgamento do mesmo Gatt estabeleceu o precedente errôneo de que produtos elaborados industrialmente, tais como a farinha de trigo, o azeite de oliva e outros, deviam ser considerados como bens agrícolas, quer dizer, fora das regras. A decisão era absurda, como seria a de catalogar uma máquina de aço ou um avião de "mineral" por serem feitos a partir de minério de ferro ou alumínio!
É esse desequilíbrio que leva à proibição de que o Brasil restitua parte dos impostos ao fabricante, a fim de desonerar a exportação de um torno ou um motor elétrico e permite, ao mesmo tempo, que a França e os EUA transfiram somas fabulosas ao seu "agribusiness" para produzir e exportar, fora das regras do mercado, açúcar, algodão, carne de frango, óleo e farinha de soja etc. etc.
O renovado deslumbramento com o mar turquesa do Caribe não me faz esquecer que estive aqui em Cancún em 1981, quando o presidente Reagan liquidou as esperanças de boa parte do mundo, no sentido de levar para um foro democrático como a ONU as negociações para vincular o comércio às finanças e à dívida. O México foi o primeiro país a pagar, no ano seguinte, o preço desse sistema injusto, com o desencadeamento da crise da dívida externa da qual até hoje não logrou sair a América Latina. Passamos, desde então, 20 anos a dizer sim à dominação dos poderes e idéias de fora, com os resultados que aí estão.
Temos agora de preservar a unidade do mundo em desenvolvimento e aprender a dizer não à injustiça e ao desequilíbrio, não para recusar, mas sim para propiciar uma negociação corretiva das assimetrias. Rebelde, escrevia Camus, é aquele que diz não. Ser rebelde não é necessariamente bom se a causa não presta. A nossa, porém, é uma causa justa. Se o egoísmo dos ricos não nos deixar outra saída, devemos ser rebeldes por uma boa causa.


Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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