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São Paulo, domingo, 14 de setembro de 2003

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Trinta anos depois

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

Em 1973, a chamada via pacífica chilena ao socialismo terminava com a morte de Salvador Allende sob intenso bombardeio militar ao Palácio de La Moneda. Depois do memorável enterro público ocorrido no início da redemocratização, sua referência na vida política do Chile permaneceu soterrada pela pressão militar sobre os governos da "concertación" (Democracia Cristã e Partido Socialista). Neste ano, o nome de Allende ressurge nas comemorações do Dia da Pátria, reapresentado às novas gerações pela mídia e pelas celebrações da Câmara dos Deputados, presidida por sua filha. O velho ditador Pinochet parece um "morto vivo" no país que dominou com mão-de-ferro por quase duas décadas.
Há 30 anos, no Brasil, no auge dos "anos de chumbo" e do "milagre econômico", Lula ingressou nos quadros do novo sindicalismo brasileiro para tornar-se, em pouco tempo, um líder nacional e popular. Neste ano, o nosso Dia da Pátria voltou a ser celebrado com a presença do povo em Brasília e Lula no governo da União. Paz e amor estavam escritos em várias bandeiras exibidas no Museu da República (antigo Palácio do Catete), onde Getúlio se suicidou em 1954, adiando por dez anos o golpe militar. Hoje a nossa longa transição democrática e republicana avança nos rincões mais remotos do país, depois de marchar nas grandes avenidas das metrópoles brasileiras com o grito das "Diretas-já" de 1984, do "Lula lá" de 1989 e dos caras-pintadas de 1992. Das caravanas eleitorais de 1994 até a vitória e posse de Lula em 2003, decorreu menos de uma década, que não foi politicamente perdida. Finalmente, 30 anos depois de 1973, deu-se a alternância pregada por mestre Florestan Fernandes, num processo eleitoral aberto e competitivo.
A transição democrática chilena ainda não terminou apesar das vitórias sucessivas da aliança de centro-esquerda nas eleições presidenciais da década de 90. O arcabouço jurídico-constitucional implantado pela ditadura continua essencialmente o mesmo, e o diálogo das autoridades civis com os militares, embora tenha melhorado no governo de coalizão do socialista Ricardo Lagos, continua difícil. Os direitos sociais chilenos, os mais avançados da América do Sul (universalização da saúde e da educação pública), foram destruídos durante a ditadura e ainda não se recuperaram. A retomada do crescimento do período 1986-96, por si só, não foi capaz de eliminar a pobreza gerada pelo maior experimento continental de "fascismo de mercado". Os governos de centro-esquerda que se sucederam não se livraram das condicionalidades das instituições multilaterais de Washington apesar das vantagens fiscais e comerciais de um setor altamente produtivo, o de cobre, que continuou estatal e superavitário.
A redemocratização brasileira avançou mais rapidamente no plano institucional devido às modificações aprovadas na reforma constitucional de 1988. A ampliação dos direitos sociais como direitos cidadãos foi inscrita pela elite política e intelectual progressista que havia ingressado no PMDB em meados da década de 70 sob o comando de Ulysses Guimarães. A consciência política dos direitos à cidadania se aprofundou com a organização e as lutas dos movimentos democráticos e sociais depois de 1973. Nos anos da transição "gradual e insegura" do governo Geisel, gerou-se nas universidades e dentro de alguns núcleos meritocráticos do Estado a consciência de que o Brasil havia ganhado a batalha do desenvolvimento econômico por três décadas, mas não tinha padrão de desenvolvimento social correspondente. Essa foi a razão pela qual os nossos bacharéis, críticos da ditadura e lutadores da transição democrática, proclamaram a Constituição cidadã e varreram ideologicamente a idéia de que é "preciso fazer crescer o bolo para depois distribuí-lo", tão ao gosto do começo dos anos 70, período do "milagre econômico". Hoje, mesmo com as políticas de ajuste fiscal do FMI, não há quem se atreva a sustentar ideologicamente essa tese embora a resistência conservadora continue firme na defesa da concentração da terra e da riqueza patrimonial e financeira.
O ano de 1973 marca também uma virada no capitalismo mundial. Depois da "época de ouro", três décadas de choques e crises sistêmicas mudaram a morfologia do sistema capitalista, tornando-o mais assimétrico em termos de poder e menos dinâmico e convergente em temos de crescimento global. Trinta anos depois das transformações sofridas na centralização do capital e do poder em escala mundial, o espectro político da potência hegemônica caminhou mais uma vez para a direita. Na certeza da vitória definitiva da restauração liberal conservadora dos anos 80, as elites políticas do Império continuam reafirmando a fé "utópica" do liberalismo anglo-saxão: só o liberalismo econômico garante as liberdades públicas e o bem comum.
A longa transição democrática na América do Sul está chegando ao fim, mas as consignas progressistas foram sendo derrotadas pela hegemonia conservadora e neoliberal das últimas décadas. É preciso voltar à luta, não importando se se trata da meritocracia do Estado regulador e do Estado de bem-estar, da descolonização e da libertação nacional, da social-democracia ou do socialismo democrático. Na história da modernidade capitalista, desde a Revolução Francesa, as vitórias e as derrotas populares nunca são definitivas. Para os que participaram da longa noite da ditadura brasileira e da experiência chilena, o tempo da "plegária por los muertos" já passou, só resta a memória. Para o povo chileno, é hora de celebrar a ressurreição: "grácias à la vida!". Para o povo brasileiro, é tempo de manter a esperança na democracia e a luta pelo avanço social.


Maria da Conceição Tavares, 73, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
Internet: www.abordo.com.br/mctavares
E-mail - mctavares@abordo.com.br


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