|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Trinta anos depois
MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
Em 1973, a chamada via pacífica chilena ao socialismo terminava com a morte de Salvador
Allende sob intenso bombardeio
militar ao Palácio de La Moneda.
Depois do memorável enterro público ocorrido no início da redemocratização, sua referência na
vida política do Chile permaneceu soterrada pela pressão militar
sobre os governos da "concertación" (Democracia Cristã e Partido Socialista). Neste ano, o nome
de Allende ressurge nas comemorações do Dia da Pátria, reapresentado às novas gerações pela
mídia e pelas celebrações da Câmara dos Deputados, presidida
por sua filha. O velho ditador Pinochet parece um "morto vivo"
no país que dominou com mão-de-ferro por quase duas décadas.
Há 30 anos, no Brasil, no auge
dos "anos de chumbo" e do "milagre econômico", Lula ingressou
nos quadros do novo sindicalismo
brasileiro para tornar-se, em pouco tempo, um líder nacional e popular. Neste ano, o nosso Dia da
Pátria voltou a ser celebrado com
a presença do povo em Brasília e
Lula no governo da União. Paz e
amor estavam escritos em várias
bandeiras exibidas no Museu da
República (antigo Palácio do Catete), onde Getúlio se suicidou em
1954, adiando por dez anos o golpe militar. Hoje a nossa longa
transição democrática e republicana avança nos rincões mais remotos do país, depois de marchar
nas grandes avenidas das metrópoles brasileiras com o grito das
"Diretas-já" de 1984, do "Lula lá"
de 1989 e dos caras-pintadas de
1992. Das caravanas eleitorais de
1994 até a vitória e posse de Lula
em 2003, decorreu menos de uma
década, que não foi politicamente
perdida. Finalmente, 30 anos depois de 1973, deu-se a alternância
pregada por mestre Florestan Fernandes, num processo eleitoral
aberto e competitivo.
A transição democrática chilena ainda não terminou apesar
das vitórias sucessivas da aliança
de centro-esquerda nas eleições
presidenciais da década de 90. O
arcabouço jurídico-constitucional implantado pela ditadura
continua essencialmente o mesmo, e o diálogo das autoridades
civis com os militares, embora tenha melhorado no governo de
coalizão do socialista Ricardo Lagos, continua difícil. Os direitos
sociais chilenos, os mais avançados da América do Sul (universalização da saúde e da educação
pública), foram destruídos durante a ditadura e ainda não se
recuperaram. A retomada do
crescimento do período 1986-96,
por si só, não foi capaz de eliminar a pobreza gerada pelo maior
experimento continental de "fascismo de mercado". Os governos
de centro-esquerda que se sucederam não se livraram das condicionalidades das instituições
multilaterais de Washington apesar das vantagens fiscais e comerciais de um setor altamente produtivo, o de cobre, que continuou
estatal e superavitário.
A redemocratização brasileira
avançou mais rapidamente no
plano institucional devido às modificações aprovadas na reforma
constitucional de 1988. A ampliação dos direitos sociais como direitos cidadãos foi inscrita pela
elite política e intelectual progressista que havia ingressado no
PMDB em meados da década de
70 sob o comando de Ulysses Guimarães. A consciência política
dos direitos à cidadania se aprofundou com a organização e as
lutas dos movimentos democráticos e sociais depois de 1973. Nos
anos da transição "gradual e insegura" do governo Geisel, gerou-se nas universidades e dentro de
alguns núcleos meritocráticos do
Estado a consciência de que o
Brasil havia ganhado a batalha
do desenvolvimento econômico
por três décadas, mas não tinha
padrão de desenvolvimento social
correspondente. Essa foi a razão
pela qual os nossos bacharéis, críticos da ditadura e lutadores da
transição democrática, proclamaram a Constituição cidadã e
varreram ideologicamente a
idéia de que é "preciso fazer crescer o bolo para depois distribuí-lo", tão ao gosto do começo dos
anos 70, período do "milagre econômico". Hoje, mesmo com as políticas de ajuste fiscal do FMI, não
há quem se atreva a sustentar
ideologicamente essa tese embora
a resistência conservadora continue firme na defesa da concentração da terra e da riqueza patrimonial e financeira.
O ano de 1973 marca também
uma virada no capitalismo mundial. Depois da "época de ouro",
três décadas de choques e crises
sistêmicas mudaram a morfologia do sistema capitalista, tornando-o mais assimétrico em termos de poder e menos dinâmico e
convergente em temos de crescimento global. Trinta anos depois
das transformações sofridas na
centralização do capital e do poder em escala mundial, o espectro
político da potência hegemônica
caminhou mais uma vez para a
direita. Na certeza da vitória definitiva da restauração liberal conservadora dos anos 80, as elites
políticas do Império continuam
reafirmando a fé "utópica" do liberalismo anglo-saxão: só o liberalismo econômico garante as liberdades públicas e o bem comum.
A longa transição democrática
na América do Sul está chegando
ao fim, mas as consignas progressistas foram sendo derrotadas pela hegemonia conservadora e
neoliberal das últimas décadas. É
preciso voltar à luta, não importando se se trata da meritocracia
do Estado regulador e do Estado
de bem-estar, da descolonização e
da libertação nacional, da social-democracia ou do socialismo democrático. Na história da modernidade capitalista, desde a Revolução Francesa, as vitórias e as
derrotas populares nunca são definitivas. Para os que participaram da longa noite da ditadura
brasileira e da experiência chilena, o tempo da "plegária por los
muertos" já passou, só resta a memória. Para o povo chileno, é hora de celebrar a ressurreição:
"grácias à la vida!". Para o povo
brasileiro, é tempo de manter a
esperança na democracia e a luta
pelo avanço social.
Maria da Conceição Tavares, 73, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
professora associada da Universidade de
Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
Internet: www.abordo.com.br/mctavares
E-mail - mctavares@abordo.com.br
Texto Anterior: Artigo: A melhor aposta da Basiléia é manter a simplicidade Próximo Texto: Luís Nassif: O olhar de meu pai Índice
|