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LUÍS NASSIF
O olhar de meu pai
Antes dos 13 anos, declarei guerra a meu pai. Eu
passara para o terceiro ano do
ginásio, mudou o irmão Marista titular da classe, e tive a oportunidade de tirar o primeiro lugar, algo que não conseguira
nos dois anos anteriores.
Fui para casa de boletim na
mala e peito estufado, e o velho
nem ligou. À noite, no encontro
de pais e alunos no Marista, um
pai chegou perto de nós, saudou
o meu feito e indagou se manteria a colocação. Seu Oscar respondeu, irritado: "Problema
dele". Anos depois, Chafik, seu
melhor amigo, me contou que
ele não se conformara com minha decisão de, aos 12 anos, me
tornar jornalista, e não seu sucessor na Farmácia Central.
Desde aquela noite de 1963
um muro se ergueu entre nós.
No mês seguinte caí para 7º da
classe, no terceiro mês para 15º,
do quarto mês em diante fui o
último para o todo e sempre.
Puni o seu Oscar a cada prova
malfeita, a cada gazeta engendrada, a cada rebelião contra os
irmãos. Mas, nos momentos
cruciais, consegui o seu apoio,
especialmente no dia em que o
reitor Lino Teódulo foi à minha
casa com acusações falsas, em
represália à minha militância
estudantil. Disse-lhe na cara
que ele estava mentindo, e meu
pai me apoiou.
Nem isso quebrou as nossas
barreiras. Eu chegava em casa
antes de meu pai chegar, refugiava-me na tia Rosita na hora
do jantar. Depois, quando ele
descia de novo para fechar a
farmácia, corria para casa, para dormir antes que ele voltasse
de vez. Mas de manhã bebia cada som que ele emitia, cada gesto de ansiedade, andando para
lá e para cá no corredor de casa,
os gemidos de quem carrega os
fardos do mundo. E me punia
por não poder ajudá-lo.
Ao longo da vida, guardei em
frascos de cristal os poucos momentos de emoção que consegui
compartilhar com ele, como o
garimpeiro que procura a pepita na bateia. Registrei seu choro
na morte da tia Marta, as lágrimas na missa de sétimo dia do
vô Issa, seu sogro, a última ida a
Poços de Caldas, para ser informado da morte de seu melhor
amigo, e seu olhar quando divisou a cidade ao longe. Mais tarde, acompanhei seu silêncio
quando tia Rosita morreu. Não
contamos nada para ele, e ele
nunca mais perguntou dela, para não ouvir a resposta que temia.
E me lembrei para sempre do
dia em que o critiquei na casa
do vô Issa por ter comprado um
bilhete de loteria enquanto estávamos acampados por lá,
procurando casa para alugar
em São Paulo. Ele saiu para a
rua, fui atrás e pedi a Deus as
palavras que me permitissem
explicar o que sentia. Abracei-o,
aquele homem alto, chorando,
e falei, falei e falei, disse-lhe que
ele continuava o centro da família e que minha preocupação
era apenas para que não demonstrasse desespero indo
atrás de miragens. E só serenei
quando ele se acalmou e me
olhou com olhar de pai agradecido.
O segundo derrame chegou 12
anos depois do primeiro. Só depois de morto e enterrado comecei minha longa caminhada
atrás de meu pai. Passei a buscá-lo em cada contemporâneo,
em cada amigo. Com as velhas
senhoras de Poços descobri o
galanteador; com os fregueses
mais humildes da farmácia,
uma generosidade que nunca
pressenti.
Com os amigos, a pessoa
aberta e alegre que submergiu
com a crise da farmácia, mas
que continuou sendo o mais
gentil dos poços-caldenses.
E, quanto mais o buscava,
passava a descobrir o inverso, a
busca que ele fazia de mim.
Diariamente meu pai levava
minhas irmãs ao Colégio São
Domingos, e, na volta, pegava
um amigo meu para almoçar e
saber notícias minhas de São
Paulo. Antonio Candido me falou do orgulho com que ele relatava minhas primeiras reportagens. O padre Trajano me contava das notas que levava ao
"Diário de Poços" relatando cada vitória em festival, em concurso literário. E minha mãe
me contou que, no auge da minha crise de adolescência, ela
perdeu a fé no meu futuro, e ele
acreditou.
Às vezes sinto o travo da última conversa que não houve,
dos beijos que não lhe dei. Mas
em algumas noites o sinto ao
meu lado, daquele modo silencioso com que ficava com a tia
Rosita, sem nada falar, porque
palavras eram desnecessárias.
Apenas me olhando com aquele
olhar de quem finalmente se fez
entender.
E-mail - Luisnassif@uol.com.br
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