São Paulo, sábado, 14 de dezembro de 2002

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ARTIGO

Nike luta pela liberdade de expressão

PATTI WALDMEIR
DO "FINANCIAL TIMES"

Será que as grandes empresas têm o direito constitucional de dizer inverdades? O mundo dos negócios dos EUA está lutando por estabelecer esse direito no pior momento possível: quando a indignação pública contra a comunidade empresarial inspirada pelo escândalo da Enron está em seu pico histórico.
Ao longo das últimas semanas, a Suprema Corte dos Estados Unidos se viu inundada por vigorosas petições apresentadas por ampla gama de empresas norte-americanas, as quais alegam que o tribunal deveria sustentar o direito das corporações a fazer declarações que posteriormente são apontadas como falsas.
Nos próximos dias, os juízes se reunirão para decidir se acatarão ou não o caso que envolve a Nike, popular fabricante de equipamentos esportivos. Descrito como um potencial marco no que tange às leis de liberdade de expressão, o caso envolve os esforços da Nike para se defender contra as acusações de que controla unidades fabris cujas práticas trabalhistas são predatórias.

Tribunal da Califórnia
A Suprema Corte do Estado da Califórnia decidiu em maio passado um veredicto que causou choque às empresas e à mídia -que a Nike podia ser processada por argumentos apresentados em defesa de suas práticas de negócios.
Sem considerar a veracidade das alegações da Nike, o tribunal decidiu que a empresa não tinha liberdade de expressão, nem mesmo em uma situação de debate público sobre a globalização e os níveis salariais em outros países.
As declarações da Nike, decidiu o tribunal, eram "fala comercial", cujo objetivo é vender produtos aos consumidor, e portanto não estavam sob a proteção da Primeira Emenda à constituição dos Estados Unidos (que garante a liberdade de expressão). Se a Nike cometesse qualquer erro factual no debate mesmo que honesto, poderia ser severamente punida, de acordo com a decisão.
Mas os críticos da Nike não estão sujeitos a restrições equivalentes, argumenta Walter Dellinger, ex-procurador geral da Justiça dos Estados Unidos e parte da poderosa equipe judicial montada para representar a Nike.
Os críticos da empresa têm o direito constitucional de cometer erros sem que sejam considerados judicialmente responsáveis, contanto que suas declarações não sejam "deliberadamente ou irresponsavelmente falsas", diz Stephen Barnett, da Escola Boalt Hall de Direito na Universidade da Califórnia.
Se a decisão for mantida, dizem os críticos nas empresas, ela na verdade equivaleria a amordaçar ampla gama de companhias. De acordo com a petição apresentada pela Nike ao tribunal, ela se aplicaria a "expressão em qualquer parte do mundo por qualquer empresa que faça negócios na Califórnia".
E se aplicaria igualmente, diz Robin Conrad, do centro judicial da Câmara do Comércio dos Estados Unidos, a "qualquer empresa que fale na Califórnia ou seja ouvida na Califórnia". Em um mundo de comunicação via internet, dizem os especialistas judiciais, isso se aplicaria a qualquer empresa que tenha um site.
Empresas importantes e companhias de mídia, do "The New York Times" à Microsoft, protestaram contra o efeito potencialmente paralisante da decisão, que cobre até mesmo cartas a uma publicação ou comentários feitos para jornalistas.
"Uma empresa só poderia garantir sua segurança contra uma indenização potencialmente devastadora se recusando terminantemente a falar", diz o professor Laurence Tribe, um estudioso da Constituição, em petição favorável à Nike.
No momento em que o público exige mais transparência da parte das empresas, dizem os advogados da Nike, não faz sentido silenciar as corporações por medo.
"Sob a decisão, erros são passíveis de punição, mas erros são inevitáveis em qualquer debate público", disse Dellinger.
Esse é o cerne do argumento da Nike: o de que suas declarações eram parte de um debate quase político sobre a globalização, e assim se qualificam para o nível mais alto de proteção garantido ao discurso político. O tribunal da Califórnia, em contraste, tratou as palavras da Nike quase como publicidade "fala comercial", que recebe proteção muito menor.

Proteção à fala
"A Suprema Corte está interessada nesses casos quanto à liberdade de expressão empresarial", diz Robin Conrad, da Câmara de Comércio dos Estados Unidos, que espera fervorosamente que os juízes acatem o caso e rejeitem a definição do tribunal californiano. Alguns dos juízes favorecem conceder plena proteção à fala comercial, enquanto outros prefeririam continuar a tratá-la de maneira mais restrita. As empresas esperam que o tribunal use o caso para esclarecer sua posição.
Os adversários da Nike no processo dizem que as empresas honestas nada têm a temer. Eles aplaudem o que classificam como "um novo padrão de prestação de contas" e de transparência corporativa definido pela decisão do tribunal californiano.
A corte mesma, em sua decisão, assumiu posição semelhante: "Isso significa apenas que um empreendimento comercial, quando promove suas vendas e lucros por meio de representações factuais de seus produtos ou operações, deve dizer a verdade", escreveu a juíza Joyce Kennard, que redigiu a opinião majoritária na decisão por quatro a três.
A Suprema Corte deve decidir em breve se revisará ou não o veredicto da instância inferior.


Tradução de Paulo Migliacci


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