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São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

O Renascimento e o relógio-cuco

RUBENS RICUPERO

"Na Itália, por 30 anos, sob os Bórgias, tiveram guerra, terror, homicídio, sangue e produziram Michelangelo, Leonardo da Vinci e o Renascimento. Na Suíça, tiveram amor fraterno, 500 anos de democracia e paz e o que produziram...? O relógio-cuco." A tirada, uma das mais inesquecíveis do cinema, foi contribuição pessoal de Orson Welles, que conseguiu a proeza de "roubar", com uma frase, a glória do roteiro escrito por Graham Greene para "O Terceiro Homem".
Acabo de voltar de Viena, onde revi a roda-gigante do Prater. É ali que se passa a cena que fixou o renitente estereótipo dos suíços. Não é preciso dizer que, apesar do brilho teatral, a tirada do personagem Harry Lime é simplista e falsa em relação tanto à Renascença italiana quanto à democracia suíça. Séculos antes dos Bórgias, já no Duzentos e no Trezentos, Florença alcançava a plena alfabetização de todas as crianças e uma proporção considerável delas atingia o estudo das matemáticas e as escolas superiores. Isso tudo graças ao autogoverno da próspera cidade-Estado mercantil antes do domínio dos déspotas. Foi então que floresceram Dante, Giotto, Petrarca, Bocaccio, os poetas do "dolce stil nuovo", sem mencionar, em outras partes da Itália, o maior dos santos, Francisco de Assis, Tomás de Aquino, os pintores e os arquitetos venezianos.
A fala de Welles tampouco faz justiça aos helvéticos, que, além de luzirem nas artes da relojoaria, na qual, aliás, foram precedidos pelos holandeses, também produziram Pestalozzi e o começo da pedagogia moderna, Rousseau, Benjamin Constant, Mme. de Staël, Ferdinand de Saussure e a linguística atual, Jean Piaget, Le Corbusier, Giacometti, Dürrenmatt, Godard, sem esquecer o historiador que mais fez para associar as palavras Itália e Renascença, Jacob Burkhardt.
Nada disso impede que a comparação reintroduza o debate sobre o tema apaixonante e perigoso das relações entre sistema político e criatividade cultural, o qual pode ser invertido como o vínculo entre cultura em geral, no sentido mais amplo, abrangente da dimensão histórica e os resultados em termos de vida política, progresso econômico, dinamismo inventivo nas artes. Os economistas e cientistas sociais costumam correr do assunto do mesmo modo que os historiadores olham com desconfiança as tentativas "à la Toynbee" de identificar os motivos da ascensão e declínio das civilizações. Essas sínteses globais lhes aparecem como não-científicas, evocativas de preconceitos como os estereótipos dos diversos caracteres de povos, contra os quais nos alertava, há mais de meio século, nosso saudoso professor Dante Moreira Leite. O último intento nesse sentido foi o de Huntington com a tese do "choque das civilizações", oportunisticamente manipulada para demonizar os muçulmanos. Mas, apesar dos pesares, o tema ressuscita, pois ninguém resiste à tentação de explicar por que alguns povos dão certo e outros não.
Essas considerações vêm a propósito do terremoto que abala a Suíça, país onde, tudo contado, tenho vivido mais de 12 anos e pelo qual sinto admiração e estima. A democracia helvética é única e original, com elementos da democracia direta dos gregos, como o frequente recurso a referendos e até a sobrevivência, em pequenos cantões, da "assembléia do povo", a reunião em que todos os cidadãos, reunidos em praça pública, votam com a mão erguida, como em Atenas. Outro desses resquícios é a idéia de que a Suíça não tem Exército porque é um exército, isto é, cada cidadão faz serviço militar todos os anos e guarda as armas em casa. Governado por um Conselho Federal de sete ministros, que se revezam a cada ano na Presidência protocolar, o país é quase um milagre histórico de harmoniosa convivência entre povos de quatro línguas diferentes e duas tradições religiosas opostas, no coração de um continente dilacerado por guerras, genocídios e tenazes ódios raciais.
A chave desse milagre é a herança da democracia ao nível das comunas, com a maior parte dos poderes concentrada nos municípios, o relativo igualitarismo e homogeneidade -nunca tiveram feudalismo- e o culto do compromisso, o senso de medida e estabilidade, esta última expressa na fórmula de equilíbrio dos partidos no governo. Havia décadas que essa fórmula não mudava: dois ministros socialistas, dois democratas-cristãos (centro), dois radicais (direita) e um da União Democrática do Centro (extrema direita). De repente, graças a um líder controvertido e agressivo, mesmo em relação à tradição consensual, a extrema direita, neoliberal em economia, hostil ao ingresso na ONU e na União Européia, ao aumento de imigrantes e de refugiados, ganha a eleição de outubro, explorando a crise econômica, a frustração decorrente do desemprego, a falência da Swissair, a insegurança provocada pela globalização e as ameaças à identidade suíça provenientes da unificação da Europa. Completando o triunfo, ela vem agora de eleger no Parlamento seu líder, Blöcher, como o segundo representante do partido no governo, alterando a fórmula tradicional e expelindo uma ministra democrata-cristã, fato que não ocorria havia 130 anos (aqui, os ministros partiam por vontade própria, após tempo razoável de serviço).
Não admira que tanta desmesura gere ansiedade em nação que tem horror aos excessos na política e na vida, bem como a líderes carismáticos ou demasiado brilhantes. A busca do consenso para desarmar conflitos é o traço característico dessa sociedade. Todo mundo sabe que a Suíça é neutra, não participa de guerras. Quantos sabem, porém, que, em contraste com a Itália, com a França, com a Alemanha, aqui -escrevo de Genebra- quase não há greves? Muitos contratos coletivos trazem a cláusula da "paz perpétua", pela qual só se paralisa o trabalho após esgotados infindáveis estágios de conciliação. Essas virtudes serão postas à prova pela guinada à direita, temendo-se que a nova maioria governamental reduza os gastos públicos, corte os benefícios sociais e intensifique a campanha contra estrangeiros e a adesão à UE, eco do populismo vitorioso em outras eleições européias.
Até que ponto serão os suíços uma vez mais capazes de provar que seu maior talento é a capacidade de gerir as tensões de uma sociedade relativamente pequena, mas complexa, sem violência nem opressão de minorias, por meio de compromissos e flexibilidade? Muito mais que o relógio-cuco, essa é a grande superioridade que fez de território montanhoso, sem recursos naturais, com menos de um quarto da superfície do Estado de São Paulo e metade da população da capital paulista, um dos países de mais alto bem-estar do mundo. E, em que pese o cinismo de Welles, para um europeu do século 20, nascer numa das brilhantes culturas vizinhas à Suíça poderia tornar a vida mais excitante, mas indiscutivelmente aumentava muito a chance de terminá-la com morte matada em trincheira, debaixo de bombardeio aéreo ou de tortura em campo de concentração.


Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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