São Paulo, Sexta-feira, 15 de Outubro de 1999
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OPINIÃO ECONÔMICA

FMI e pobreza: fatos, factóides e versões


MAILSON DA NÓBREGA

Desinformação e preconceito têm dificultado o correto entendimento sobre o Fundo Monetário Internacional e sobre os objetivos de seus acordos com o Brasil. Dessa vez, esse binômio deu lugar a um festival de interpretações equivocadas sobre o discurso em que Michel Camdessus, seu diretor-gerente, abordou o tema da pobreza.
Ser contra o FMI e sua atuação não constitui erro. O Fundo é, afinal, uma espécie de Geni internacional. São muitos os que lhe jogam pedras. A direita norte-americana quer sua extinção, acadêmicos de Harvard o acusam de erros na Ásia e segmentos da esquerda latino-americana não param de satanizá-lo.
O destaque por aqui é o elevado grau de puerilidade do sentimento antifundo. Falta dinheiro para presídios e cestas básicas? É maldade do FMI. Condene-se o Fundo por "insensibilidade" e o governo por "subserviência".
Se estudassem melhor o assunto, esses críticos poderiam aprender que os acordos com o Fundo envolvem questões macroeconômicas e metas globais. As prioridades dos gastos continuam uma responsabilidade dos governos.
Infelizmente, a abordagem do tema tem lançado mais treva do que luz sobre o debate em torno das recomendações de política econômica do FMI. Em lugar da crítica séria, aparece o comentário ligeiro, às vezes burlesco e rançoso.
Parte da mídia cria um ar de mistério sobre o FMI. Fica a sensação de encontros subterrâneos, em ambientes úmidos e tétricos. O Fundo e o governo se reuniram "a portas fechadas", diz-se, como se as reuniões devessem acontecer a portas abertas.
Ondas de conclusões epidérmicas e desprovidas de sentido, de tão repetidas, viram verdade absoluta. É o que se passou com o citado discurso de Camdessus, pronunciado na última reunião anual do Fundo, em 28/9/99.
Camdessus invocou teatralmente um bilhete escrito por dois adolescentes de Guiné, que morreram ao tentar chegar à Europa no trem de pouso de um avião. Eles falaram do sofrimento na África: guerras, doenças, fome, falta de direitos às crianças. Camdessus pediu, então, que se ouvisse o grito dos pobres.
Usando largamente da retórica, talvez para ganhar a simpatia de críticos superficiais, Camdessus pediu um grande esforço para a erradicação da pobreza.
Citou vários documentos, entre eles a Declaração de Copenhague sobre o Desenvolvimento Social, de março de 1995, segundo a qual a proporção de pessoas vivendo em extrema pobreza nos países em desenvolvimento deveria ser reduzida pelo menos à metade até 2015.
Uma leitura cuidadosa do texto mostra que o FMI não mudou. Não vai patrocinar aumento de gastos públicos para combater a pobreza. Seu papel, reiterado em recomendações de recente auditoria, deve ser cada vez mais centrado nos aspectos macroeconômicos dos programas que contam com seu apoio.
Sua contribuição ao combate à pobreza será o perdão de dívidas de países muito pobres e altamente endividados, em linha com medida idêntica adotada pelas nações industrializadas. Para tanto, vai vender parte de seu estoque de ouro.
No Brasil, todavia, os títulos de capa dos principais jornais asseguraram que o FMI se transformara. Camdessus teria até fixado um ano para o fim da pobreza: 2015 (na verdade uma data mencionada na declaração de Copenhague).
A sensação é que poucos leram o texto, que está disponível na Internet (www.imf.org). Incríveis conclusões foram extraídas das manchetes. Um jornal informou que o FMI havia questionado o "Consenso de Washington", que não está mencionado nem sequer insinuado no discurso.
Vejam esta de um economista do PT: "O reconhecimento até pelo FMI do completo fracasso de suas políticas monetaristas e neoliberais abre um espaço, embora limitado, para difundir a visão e as propostas da oposição com relação à questão social".
Os políticos comemoraram. Segundo eles, chegou a hora de rever o acordo com o FMI para permitir o aumento dos gastos "sociais" e gerar "alívio" na economia. Afirmou-se até que o Fundo ecoava a proposta antipobreza de um senador brasileiro.
O FMI tem seus erros. Afinal, ele é composto por seres humanos. São burocratas internacionais não submetidos a qualquer controle social. Mesmo assim, a revista "The Economist", que também tem suas críticas, reconhece sensatamente que, se o FMI não existisse, teria que ser inventado.
Se o FMI merece ou não as críticas, é assunto para intermináveis discussões. O que não dá para aguentar são as asnices ditas no Brasil a seu respeito nos últimos dias.


Mailson da Nóbrega, 57, ex-ministro da Fazenda (governo José Sarney), sócio da Tendências Consultoria Integrada, escreve às sextas-feiras nesta coluna.

E-mail: mailson@palavra.inf.br




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