São Paulo, sábado, 16 de janeiro de 1999

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OPINIÃO ECONÔMICA

A dor da pátria

RUBENS RICUPERO

Dos integrantes da geração espanhola de 1898, humilhados pela derrota diante dos Estados Unidos, a perda de Cuba, Porto Rico, as Filipinas, dizia-se que "les dolía España", que a Espanha lhes doía.
Unamuno, um deles, foi o homem do "sentimento trágico da vida". Azorin, que teria criado o mito da "geração de 98" em artigos no jornal "ABC", atribuía a esse movimento o propósito de reagir contra a decadência de uma "Espanha fúnebre, submetida aos prazeres dos espetáculos de crueldade e morte".
Tirando a referência às touradas (que acabam de perder Antonio Ordoñez, uma de suas glórias), esse sentimento de dor da pátria não está distante do que se tem ao ler o noticiário que chega dos jornais brasileiros nestes primeiros dias do ano pelas ondas da Internet: o Brasil dói em nós.
Admito que a amostragem é parcial, seletiva, que não se tem acesso ao jornal inteiro. Perde- se, sobretudo, todo o resto: as praias, o sol, o cheiro do verão, a música, a vitalidade e o dinamismo do povo. Mas, certo ou errado, o que se capta desses artigos não tem nada a ver com o que seria natural esperar no momento em que tantos começos se reforçam mutuamente: o do governo, o do ano, o do século, o do milênio. Onde estão a esperança, a animação de todo começo, a alegria, evocada por João Cabral, do caderno novo que se inicia?
Por outro lado, falar em fúnebre talvez seja um pouco forte. Triste, apreensivo, desalentado, serão, quem sabe, adjetivos mais apropriados para descrever a atmosfera de país que transparece desses escritos. Qual seria a explicação?
Decadência certamente não pode ser, pois é fenômeno que só tem cabimento quando houve antes apogeu, como na Espanha, com seu século de ouro, seu império onde o sol jamais se punha.
Fracasso, vontade de emigrar, também não é. Foi esse o caso nos anos 80, quando a estagflação se somava à falta de liberdade para criar a impressão de que a economia e a política, tudo estava contra nós. Até mesmo, pouco depois o destino, sob a forma da inesperada morte de Tancredo, mais tarde, o "impeachment" de Collor.
Desta vez trata-se mais da frustração nascida da consciência de que não conseguimos terminar o que iniciamos e mesmo a obra incompleta ameaça voltar-se contra nós. No fundo, sabemos que não nos saímos tão mal assim em consolidar a democracia de massas, imperfeita vá lá, de gente extremamente pobre, quase sem acesso à informação. No entanto muito mais ampla e universal do que jamais tivemos no passado. Tampouco se deve minimizar o valor da estabilidade alcançada depois de 30 anos de inflação crônica e de indexação. São conquistas a preservar e nisso o instinto do povo não se engana, como indicam as pesquisas.
O problema é que a democracia e a estabilidade parecem estagnadas, sem fôlego para nos aproximar das metas que faltam: crescimento, emprego, o fim da injustiça e da miséria. Pior, tem-se às vezes a sensação de que o preço para conservar o que conquistamos a duras penas é renunciar a tudo o que nos resta a alcançar, que a condição para ter maioria em nosso tipo de democracia é fazer concessões a interesses que bloqueiam a mudança social. É desse impasse que surge a frustração, agravada pelo derrotismo diante de nossa suposta impotência diante dos mercados financeiros internacionais.
As encruzilhadas decisivas na vida nas nações necessitam de gerações à altura do desafio. Como foi o caso dos intelectuais espanhóis de 98, dos americanos da "geração perdida" da Grande Depressão, que incluiu nomes como Faulkner, Hemingway, Fitzgerald e os criadores do New Deal.
No Brasil, tivemos ao menos duas experiências dessa importância, a primeira no ocaso do Império, a partir de 1870, com gente tão diversa como Tobias Barreto, Sílvio Romero e outros integrantes da Escola de Recife, os republicanos históricos, os abolicionistas, os positivistas, culminando na maturidade de Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha.
A segunda coincide com a agonia da República Velha e cobre manifestações como a Semana de Arte Moderna, o início do Tenentismo com os 18 do Forte de Copacabana, a fundação do Partido Comunista, do Centro Dom Vital, todos em 1922, desembocando na revolução de 30 e nos grandes intérpretes do Brasil dessa época: Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior.
Embora distintas, essas experiências sempre apresentam dois elementos: a renovação da cultura e um projeto autônomo de nação. Em outras palavras, os dois ingredientes indispensáveis a que um povo restabeleça a confiança em si próprio. Se, para isso, é preciso passar pela dor, que assim seja: terá valido a pena.


Rubens Ricupero, 61, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), escreve aos sábados nesta coluna.



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