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OPINIÃO ECONÔMICA
Os caminhos do retrocesso
RUBENS RICUPERO
Os sete sinistros cavaleiros
do Apocalipse, os tenebrosos
espectros de Tolkien -os nove
Wraiths que aterrorizam a Terra
do Meio- não chegam mais para
as encomendas e parecem ter concluído um acordo para dividir o
trabalho de semear desgraças e sofrimento. Enquanto a guerra, a fome, a peste da Aids devastam a
África, a miséria, o desemprego, a
revolta suicida e sem esperança se
acirram sobre a América do Sul.
Ontem na Argentina, no Equador,
no Peru, hoje na Venezuela e na
Bolívia, saques, motins, levantes
espontâneos e desorganizados engordam as estatísticas dos miseráveis mortos pela polícia e o Exército. Mais e mais nessas latitudes,
governar é reprimir.
Cada um desses episódios tem
um fator específico que o desencadeou. Aqui, foi o aumento de impostos sobre os pobres; ali, a elevação da taxa da água, do preço do
botijão de gás, do combustível, o
congelamento das contas bancárias. Na Colômbia, em vez dos levantes esporádicos e fugazes, a
violência já se instalou permanentemente, com armas e bagagens,
sob a forma da guerrilha aliada
ao narcotráfico. No Brasil, há
pouca violência politicamente organizada, mas, em compensação,
o padrão que se esboça evoca em
alguns aspectos o colombiano, até
para pior: criminalidade selvagem, que é uma forma de guerra
civil, ao lado da indústria capitalista do narcotráfico, que coordena levantes em presídios e fecha o
comércio e as escolas no Rio, de
maneira que seria inimaginável
em Bogotá.
O pano de fundo dessa desintegração progressiva do sistema político e dos laços de coesão social é
o persistente fracasso das políticas
econômicas para retomar o desenvolvimento que o continente conheceu antes da crise da "década
perdida" dos 80. A verdade é que
enganamos o mundo e a nós mesmos com a afirmação de que tínhamos saído da crise da dívida
externa de 1982.
É certo que, um após o outro, todos os países conseguiram ajustes
com o FMI e, graças aos títulos
Brady, fecharam acordos de reestruturação com os bancos privados. O que fizemos, no entanto, foi
apenas trocar uma espécie de dívida por outra diferente, escapar de
uma armadilha para tombar em
nova pior, sair do pelourinho para
ficar amarrado no tronco. Lembramos os personagens de "O Anjo Exterminador", de Buñuel.
Quando nos libertamos, enfim, do
suplício invisível que nos impedia
de cruzar uma porta escancarada,
quando acorremos à igreja e celebramos um Te Deum pela libertação, descobrimos subitamente, ao
tentar sair, que alguma força misteriosa não nos permitia de novo
transpor os umbrais do templo...
Presos na armadilha do mercado financeiro desde 1997, perdemos mais meia década, com um
declínio acumulado de 2% na
produção econômica per capita
ao longo de cinco anos. Em consequência, é dos mais inquietantes o
"Panorama Social da América
Latina", apresentado pela Cepal
para 2001-2002. Nos primeiros
anos da década de 90, a economia
crescia modestamente e as taxas
de pobreza melhoravam um pouco. A sucessão de crises financeiras, a partir de 1997, primeiro
freou esse movimento para invertê-lo em seguida.
Em 2000, ano excepcional para
a economia mundial, o índice de
pobreza no continente era de
42,1% da população e o de indigência declinara para 17,8%. No
ano seguinte, a pobreza subira para 43%, e a indigência, para
18,6%, tendo havido aumentos da
primeira em 12 países e da segunda em 14. As estimativas para
2002 são que a porcentagem de
pobres foi de 44%, e a de indigentes, de quase 20%, uma pessoa de
cada cinco, no ano passado. Em
termos absolutos, isso significa
que, em relação aos números de
2001, houve acréscimo de cerca de
7 milhões, dos quais 6 milhões extremamente pobres, e aumento de
15 milhões em comparação ao período 2000-2002.
É claro que essa é a experiência
média do continente, bastante influenciada pelo desastre sem precedentes na Argentina. Feita essa
ressalva, não há como ignorar que
tais cifras marcam "uma considerável deterioração da situação social da região", segundo declara o
relatório. Para ter uma idéia do
que representam esses números
em pessoas de carne e osso, com
um rosto, um destino, sonhos e aspirações, basta dizer que, em 2001,
a América Latina abrigava 214,3
milhões de pobres, 92,8 milhões de
indigentes, aos quais é necessário
acrescentar os 7 milhões a mais
daquele ano.
O mais desanimador -e suspeito seja essa a razão do silêncio da
Cepal sobre tal aspecto- é a alarmante dimensão de retrocesso escondida nessa tendência. De fato,
as porcentagens atuais superam
em muito as que tínhamos antes
do início da crise da dívida, em
1982. Naquele fatídico ano, o índice de pobreza era de 35% e hoje é
de 44%, quase dez pontos percentuais a mais, enquanto o de indigência era de 15% e agora subiu a
20%. Aprendi isso no "Panorama" de 1998 e fiquei tão espantado que o citei em vários discursos e
artigos. Vejo que o "Panorama"
atual já não volta a fazer a comparação. Será por julgar que ela
era inadequada por alguma razão metodológica? Ou achou que
se tratava de verdade triste demais para contemplar?
Não sei qual é a explicação.
Nem tenho prazer nenhum em
chamar a atenção para um fracasso que, afinal, é de todos nós.
Diante, porém, do espetáculo de
tantos dirigentes, um pouco por
toda a parte, aferrados a quimeras, ostentando um falso sentimento de segurança, seria imperdoável calar. É preciso, ao contrário, clamar aos céus, oportuna e
inoportunamente, como queria o
apóstolo Paulo, que certos aspectos (não todos) das políticas econômicas abraçadas por convicção
ou impostas de fora são perversos
e estão na raiz das explosões sociais que se sucedem.
Com humildade e comedimento, reconhecendo que os governos
estão em situação difícil e terão de
ser ajudados a encontrar uma saída, é indispensável proclamar, ao
mesmo tempo, que não é possível
continuar assim: 20 anos de crise e
retrocesso bastam para mostrar
que esse é o caminho do desastre.
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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