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São Paulo, domingo, 16 de fevereiro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Os caminhos do retrocesso

RUBENS RICUPERO

Os sete sinistros cavaleiros do Apocalipse, os tenebrosos espectros de Tolkien -os nove Wraiths que aterrorizam a Terra do Meio- não chegam mais para as encomendas e parecem ter concluído um acordo para dividir o trabalho de semear desgraças e sofrimento. Enquanto a guerra, a fome, a peste da Aids devastam a África, a miséria, o desemprego, a revolta suicida e sem esperança se acirram sobre a América do Sul. Ontem na Argentina, no Equador, no Peru, hoje na Venezuela e na Bolívia, saques, motins, levantes espontâneos e desorganizados engordam as estatísticas dos miseráveis mortos pela polícia e o Exército. Mais e mais nessas latitudes, governar é reprimir.
Cada um desses episódios tem um fator específico que o desencadeou. Aqui, foi o aumento de impostos sobre os pobres; ali, a elevação da taxa da água, do preço do botijão de gás, do combustível, o congelamento das contas bancárias. Na Colômbia, em vez dos levantes esporádicos e fugazes, a violência já se instalou permanentemente, com armas e bagagens, sob a forma da guerrilha aliada ao narcotráfico. No Brasil, há pouca violência politicamente organizada, mas, em compensação, o padrão que se esboça evoca em alguns aspectos o colombiano, até para pior: criminalidade selvagem, que é uma forma de guerra civil, ao lado da indústria capitalista do narcotráfico, que coordena levantes em presídios e fecha o comércio e as escolas no Rio, de maneira que seria inimaginável em Bogotá.
O pano de fundo dessa desintegração progressiva do sistema político e dos laços de coesão social é o persistente fracasso das políticas econômicas para retomar o desenvolvimento que o continente conheceu antes da crise da "década perdida" dos 80. A verdade é que enganamos o mundo e a nós mesmos com a afirmação de que tínhamos saído da crise da dívida externa de 1982.
É certo que, um após o outro, todos os países conseguiram ajustes com o FMI e, graças aos títulos Brady, fecharam acordos de reestruturação com os bancos privados. O que fizemos, no entanto, foi apenas trocar uma espécie de dívida por outra diferente, escapar de uma armadilha para tombar em nova pior, sair do pelourinho para ficar amarrado no tronco. Lembramos os personagens de "O Anjo Exterminador", de Buñuel. Quando nos libertamos, enfim, do suplício invisível que nos impedia de cruzar uma porta escancarada, quando acorremos à igreja e celebramos um Te Deum pela libertação, descobrimos subitamente, ao tentar sair, que alguma força misteriosa não nos permitia de novo transpor os umbrais do templo...
Presos na armadilha do mercado financeiro desde 1997, perdemos mais meia década, com um declínio acumulado de 2% na produção econômica per capita ao longo de cinco anos. Em consequência, é dos mais inquietantes o "Panorama Social da América Latina", apresentado pela Cepal para 2001-2002. Nos primeiros anos da década de 90, a economia crescia modestamente e as taxas de pobreza melhoravam um pouco. A sucessão de crises financeiras, a partir de 1997, primeiro freou esse movimento para invertê-lo em seguida.
Em 2000, ano excepcional para a economia mundial, o índice de pobreza no continente era de 42,1% da população e o de indigência declinara para 17,8%. No ano seguinte, a pobreza subira para 43%, e a indigência, para 18,6%, tendo havido aumentos da primeira em 12 países e da segunda em 14. As estimativas para 2002 são que a porcentagem de pobres foi de 44%, e a de indigentes, de quase 20%, uma pessoa de cada cinco, no ano passado. Em termos absolutos, isso significa que, em relação aos números de 2001, houve acréscimo de cerca de 7 milhões, dos quais 6 milhões extremamente pobres, e aumento de 15 milhões em comparação ao período 2000-2002.
É claro que essa é a experiência média do continente, bastante influenciada pelo desastre sem precedentes na Argentina. Feita essa ressalva, não há como ignorar que tais cifras marcam "uma considerável deterioração da situação social da região", segundo declara o relatório. Para ter uma idéia do que representam esses números em pessoas de carne e osso, com um rosto, um destino, sonhos e aspirações, basta dizer que, em 2001, a América Latina abrigava 214,3 milhões de pobres, 92,8 milhões de indigentes, aos quais é necessário acrescentar os 7 milhões a mais daquele ano.
O mais desanimador -e suspeito seja essa a razão do silêncio da Cepal sobre tal aspecto- é a alarmante dimensão de retrocesso escondida nessa tendência. De fato, as porcentagens atuais superam em muito as que tínhamos antes do início da crise da dívida, em 1982. Naquele fatídico ano, o índice de pobreza era de 35% e hoje é de 44%, quase dez pontos percentuais a mais, enquanto o de indigência era de 15% e agora subiu a 20%. Aprendi isso no "Panorama" de 1998 e fiquei tão espantado que o citei em vários discursos e artigos. Vejo que o "Panorama" atual já não volta a fazer a comparação. Será por julgar que ela era inadequada por alguma razão metodológica? Ou achou que se tratava de verdade triste demais para contemplar?
Não sei qual é a explicação. Nem tenho prazer nenhum em chamar a atenção para um fracasso que, afinal, é de todos nós. Diante, porém, do espetáculo de tantos dirigentes, um pouco por toda a parte, aferrados a quimeras, ostentando um falso sentimento de segurança, seria imperdoável calar. É preciso, ao contrário, clamar aos céus, oportuna e inoportunamente, como queria o apóstolo Paulo, que certos aspectos (não todos) das políticas econômicas abraçadas por convicção ou impostas de fora são perversos e estão na raiz das explosões sociais que se sucedem.
Com humildade e comedimento, reconhecendo que os governos estão em situação difícil e terão de ser ajudados a encontrar uma saída, é indispensável proclamar, ao mesmo tempo, que não é possível continuar assim: 20 anos de crise e retrocesso bastam para mostrar que esse é o caminho do desastre.


Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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