São Paulo, domingo, 16 de junho de 2002

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Regime de urgência para o ajuste externo

LUCIANO COUTINHO
O desarranjo na gestão da dívida pública colocou o Banco Central no córner. O desgaste da confiança nos papéis do Tesouro e do BC, fruto de uma sequência de erros na rolagem da dívida interna, provocou uma deterioração do perfil de vencimentos, aumentou o risco Brasil e tornou as expectativas mais sensíveis à evolução eleitoral. É um fato preocupante. Afinal, os títulos públicos, líquidos e portadores de altas taxas de retorno, funcionaram durante anos a fio como antídoto contra a hiperinflação, assumindo a função de moeda indexada, e, depois de 1994, constituíram lastro essencial para a estabilização do Real, refletindo o custo de oportunidade entre reter riqueza em moeda nacional e fazê-lo em moeda forte. Ao abalar parcialmente esse esteio -um contexto em que os mercados começam a perder a confiança na sustentabilidade das trajetórias da dívida externa e interna-, o BC brincou com fogo. Teve de recorrer ao FMI, aceitar um encurtamento de prazos e terá de operar com muita argúcia para evitar mais desgastes.
A deterioração da percepção dos investidores externos é também preocupante. São claros os sinais de escassez de crédito externo para a rolagem da dívida (privada) brasileira. A significativa elevação da taxa de risco-país (acima de 1.300 pontos) torna inviável do ponto de vista empresarial a recontratação de grande parte das operações. Assim, as empresas buscarão substituir o endividamento externo por fontes domésticas e pressionarão o mercado de câmbio para liquidar parte dos bônus vincendos no exterior. Essas pressões sobre a taxa de câmbio estão concentradas neste mês e ainda persistirão em julho e em agosto. Elas poderão agravar-se se os investimentos diretos se retraírem e, evidentemente, podem tornar-se desestabilizadoras se sobrevier adiante uma perda mais séria de confiança.
A curto prazo, espera-se que a equipe econômica retome o controle, valendo-se do empréstimo do FMI (US$ 10 bilhões) e da redução do piso mínimo de reservas bloqueadas, o que lhe assegura mais munição para intervir. Mas dificilmente a taxa de câmbio recuará para a faixa anterior, entre R$ 2,50 e R$ 2,60. Houve inequivocamente um deslocamento para cima da curva de cotação do dólar. De quanto, ainda não dá para saber.
Essa depreciação adicional da taxa de câmbio projeta novas tensões inflacionárias e praticamente inviabiliza a redução da taxa de juros pelo Copom na semana que vem, já que ficou ainda mais difícil o cumprimento da meta de inflação apesar do fraco desempenho da economia. Subir os juros e aumentar ainda mais o superávit fiscal é uma alternativa inglória. Explicita-se, mais uma vez, a precariedade da política de metas de inflação sob condições de alta vulnerabilidade externa -deixando a taxa de juros engessada num patamar insustentável. A cada rodada de crise, tudo se deteriora perigosamente.
Por tudo isso não há alternativa para a política econômica brasileira, senão a de acelerar o ajuste do déficit em conta corrente por intermédio de uma política mais agressiva de estímulo às exportações e de substituição de importações. É imperioso efetuar esse ajuste em regime de urgência. Tal constatação impõe uma hierarquia de prioridade para o próximo governo. Será imprescindível centrar todos os esforços, inicialmente, na construção de um superávit comercial crescente e, além disso, fixar nos mercados a expectativa de que o déficit em conta corrente vá reduzir-se de forma rápida, expressiva e irreversível. É o único caminho para uma redução substancial e segura da taxa de juros.
Isso requer que todos os ministérios, instrumentos e organismos (por exemplo, MF, BC, Receita Federal, Proex, BNDES, BB, MDIC, MRE) joguem coordenadamente nessa direção. Se os ventos da economia mundial ajudarem, tanto melhor. Se não, será preciso mostrar aos mercados que -caso necessário- sacrifícios temporários serão impostos para assegurar um superávit crescente. A compreensão do aspecto crucial da aceleração do ajuste externo deveria levar o atual governo a reposicionar-se de forma incisiva para não legar ao sucessor um abacaxi indescascável. O próprio presidente da República deveria comandar a área econômica nessa tarefa (em vez de, simplesmente, elidir o desafio com surtos retóricos do tipo "exportar ou morrer"). A montagem de um mecanismo rápido de tomada de decisões dentro da área econômica, a coordenação de ações entre o governo e o setor privado, a atuação pró-ativa do BNDES e do BB no financiamento das exportações e no suporte aos investimentos pró-exportação, a mobilização total do sistema diplomático para a promoção comercial etc. constituem providências mínimas a serem acionadas desde já.


Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).



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