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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Império
LUIZ GONZAGA BELLUZZO
A idéia de "globalização"
ocupa hoje enorme espaço
no imaginário social. Essa idéia
onipresente foi desenvolvida no
livro "Empire", de Antonio Negri
e Michael Ardnt, publicado recentemente.
Em seu sentido mais ideológico
e corriqueiro, essa palavra pretende sintetizar a natureza benfazeja das mudanças que vêm ocorrendo na economia e na sociedade neste início de milênio: 1) a homogeneização do espaço econômico e a submissão crescente das
malfeitorias da política à racionalidade imposta pelo mercado;
2) a aproximação entre formas
jurídicas, os estilos de vida e os
padrões culturais dos povos.
Essas concepções não conseguem esconder o seu código genético. São descendentes em linha
direta do universalismo e do progressismo iluministas, cujos genes
permitiram o nascimento e o desenvolvimento do liberalismo e
do marxismo.
Para os liberais, a universalização das formas de convivência
engendradas pelo mercado são as
únicas capazes de preservar a liberdade do indivíduo contra as
pretensões de despotismo do poder político. Para os marxistas, a
universalização da forma mercadoria, realizada por meio do "natural" expansionismo capitalista,
só poderá realizar suas promessas
de liberdade, igualdade e fraternidade quando sua dimensão
despótica, particularista e destrutiva for domesticada pela ação
política dos produtores diretos.
A globalização, em seu desenvolvimento concreto, se apresenta, na verdade, como a "regeneração" das três tendências centrais e
inter-relacionadas do capitalismo: 1) a mercantilização acelerada de todas as esferas da vida, inclusive daquelas até agora protegidas (amor, lazer, religião); 2) a
universalização da concorrência;
e 3) a concentração do poder econômico e político.
Isso significa, em primeiro lugar, condicionar o acesso de todos
os bens da vida ao impulso cego
da acumulação de riqueza sob a
forma monetária e abstrata, estreitando o espaço ocupado pelos
critérios diretamente sociais, derivados do mundo das necessidades.
Em segundo lugar, a intensificação da concorrência capitalista
impõe a redução do tempo de trabalho socialmente necessário, ao
mesmo tempo em que acelera o
processo de concentração do capital e da riqueza. Isso reverteu as
tendências a uma maior igualdade -tanto no interior das classes
sociais como entre elas- observadas no período que vai do final
da Segunda Guerra até meados
dos anos 70. Por isso, na era do
capitalismo "turbinado", os bem-sucedidos acumulam "tempo livre" sob a forma de capital fictício
(títulos que representam direitos
à apropriação da renda e da riqueza), enquanto para os mais
fracos a "liberação" do esforço se
apresenta como a ameaça permanente do desemprego, a crescente
insegurança e precariedade das
novas ocupações, a exclusão social.
A disseminação das formas
mercantis, promovida pela expansão do capitalismo -mesmo
neste momento de inigualável
pujança-, vem encontrando sérios obstáculos em seu incessante
trabalho de reduzir os "conteúdos" da vida humana às abstrações da lógica do dinheiro. Pode
se tornar intolerável para os indivíduos -ou, para a maioria deles, a sensação de que seu cotidiano e seu destino estão sendo invadidos pelas tropas de uma "racionalização" que sufoca o projeto
iluminista da vida boa e decente.
As manifestações de Seattle,
Washington, Praga e Nice revelam que o mal-estar se dissemina
pelo mundo desenvolvido. Naturalmente o desconforto dos que
protestam contra a globalização
-americanos, franceses, italianos, belgas, alemães e austríacos,
entre outros- não vem sendo
causado pela miséria que lhes rói
o estômago.
O individualismo agressivo, dizia um manifestante em Praga,
não deixa ao perdedor, ao inferiorizado, senão a alternativa de
massacrar a própria auto-estima.
"A individualização" do fracasso
não permite ao derrotado compartilhar com os outros um destino comum provocado pela desordem do sistema social. O reconhecimento social é uma preciosa forma de remuneração não monetária. E essa retribuição torna-se cada vez mais escassa quando o desemprego e a desigualdade prosperam em meio a uma eufórica
comemoração do sucesso do indivíduo.
A perda da auto-estima se
transfigura em ressentimento e
daí as explosões de racismo, de
xenofobia, de recusa do outro, seja ele quem for. Seria, no entanto,
fácil dizer que o fenômeno se esgota na recusa da alteridade. Parece que a negação do outro também é a força que reúne esses coágulos sociais dispersos e desorientados e os transforma numa massa enfurecida e raivosa.
Luiz Gonzaga Belluzzo, 58, é professor
titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos
do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia
do Estado de São Paulo (governo Quércia).
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