São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 2000

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Império

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

A idéia de "globalização" ocupa hoje enorme espaço no imaginário social. Essa idéia onipresente foi desenvolvida no livro "Empire", de Antonio Negri e Michael Ardnt, publicado recentemente.
Em seu sentido mais ideológico e corriqueiro, essa palavra pretende sintetizar a natureza benfazeja das mudanças que vêm ocorrendo na economia e na sociedade neste início de milênio: 1) a homogeneização do espaço econômico e a submissão crescente das malfeitorias da política à racionalidade imposta pelo mercado; 2) a aproximação entre formas jurídicas, os estilos de vida e os padrões culturais dos povos.
Essas concepções não conseguem esconder o seu código genético. São descendentes em linha direta do universalismo e do progressismo iluministas, cujos genes permitiram o nascimento e o desenvolvimento do liberalismo e do marxismo.
Para os liberais, a universalização das formas de convivência engendradas pelo mercado são as únicas capazes de preservar a liberdade do indivíduo contra as pretensões de despotismo do poder político. Para os marxistas, a universalização da forma mercadoria, realizada por meio do "natural" expansionismo capitalista, só poderá realizar suas promessas de liberdade, igualdade e fraternidade quando sua dimensão despótica, particularista e destrutiva for domesticada pela ação política dos produtores diretos.
A globalização, em seu desenvolvimento concreto, se apresenta, na verdade, como a "regeneração" das três tendências centrais e inter-relacionadas do capitalismo: 1) a mercantilização acelerada de todas as esferas da vida, inclusive daquelas até agora protegidas (amor, lazer, religião); 2) a universalização da concorrência; e 3) a concentração do poder econômico e político.
Isso significa, em primeiro lugar, condicionar o acesso de todos os bens da vida ao impulso cego da acumulação de riqueza sob a forma monetária e abstrata, estreitando o espaço ocupado pelos critérios diretamente sociais, derivados do mundo das necessidades.
Em segundo lugar, a intensificação da concorrência capitalista impõe a redução do tempo de trabalho socialmente necessário, ao mesmo tempo em que acelera o processo de concentração do capital e da riqueza. Isso reverteu as tendências a uma maior igualdade -tanto no interior das classes sociais como entre elas- observadas no período que vai do final da Segunda Guerra até meados dos anos 70. Por isso, na era do capitalismo "turbinado", os bem-sucedidos acumulam "tempo livre" sob a forma de capital fictício (títulos que representam direitos à apropriação da renda e da riqueza), enquanto para os mais fracos a "liberação" do esforço se apresenta como a ameaça permanente do desemprego, a crescente insegurança e precariedade das novas ocupações, a exclusão social.
A disseminação das formas mercantis, promovida pela expansão do capitalismo -mesmo neste momento de inigualável pujança-, vem encontrando sérios obstáculos em seu incessante trabalho de reduzir os "conteúdos" da vida humana às abstrações da lógica do dinheiro. Pode se tornar intolerável para os indivíduos -ou, para a maioria deles, a sensação de que seu cotidiano e seu destino estão sendo invadidos pelas tropas de uma "racionalização" que sufoca o projeto iluminista da vida boa e decente.
As manifestações de Seattle, Washington, Praga e Nice revelam que o mal-estar se dissemina pelo mundo desenvolvido. Naturalmente o desconforto dos que protestam contra a globalização -americanos, franceses, italianos, belgas, alemães e austríacos, entre outros- não vem sendo causado pela miséria que lhes rói o estômago.
O individualismo agressivo, dizia um manifestante em Praga, não deixa ao perdedor, ao inferiorizado, senão a alternativa de massacrar a própria auto-estima. "A individualização" do fracasso não permite ao derrotado compartilhar com os outros um destino comum provocado pela desordem do sistema social. O reconhecimento social é uma preciosa forma de remuneração não monetária. E essa retribuição torna-se cada vez mais escassa quando o desemprego e a desigualdade prosperam em meio a uma eufórica comemoração do sucesso do indivíduo.
A perda da auto-estima se transfigura em ressentimento e daí as explosões de racismo, de xenofobia, de recusa do outro, seja ele quem for. Seria, no entanto, fácil dizer que o fenômeno se esgota na recusa da alteridade. Parece que a negação do outro também é a força que reúne esses coágulos sociais dispersos e desorientados e os transforma numa massa enfurecida e raivosa.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 58, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).


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