São Paulo, domingo, 18 de julho de 2004

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LUÍS NASSIF

As referências de vida

Às vezes vejo meu pai em mim, às vezes minhas mãe, às vezes meu avô. Às vezes me vejo impregnado do exemplo de algum amigo ocasional. Somos um imenso mosaico de referências acumuladas ao longo da vida, especialmente na infância e na adolescência.
Minhas primeiras referências foram meus pais. Mas também meu tio João, único homem entre os dez filhos de vô Issa. Quando ele ia visitar meus avós em Poços, eu, com cinco ou seis anos, corria para a casa deles e ficava esperando sentado na porta de seu quarto até ele acordar.
Um dia passava em frente ao Hotel Santos e assisti a um vendedor de bilhete, velho, ser chutado por dois turistas. Fiquei indignado e, quando cheguei à casa de vô Issa, pedi que tio João fosse até lá enquadrar os agressores. Fiquei decepcionado quando alguma tia me lembrou de que tio João era grande, mas não era dois. E eu que o considerava o maior do mundo...
A referência maior sempre foi meu avô Issa, udenista dos brabos e dono do Bar e Restaurante Serigy, onde, em um dia da semana, se reunia o diretório da UDN, e, em outro, o do PSD.
Pai de dez filhos, entre os quais nove filhas ciumentas, avô de mais de 20 netos, vô Issa conseguia o feito de cada qual se considerar seu preferido. Nunca conheci na vida pessoa com maior carisma. Nem eu nem qualquer um que o tenha conhecido.
Durante muitos anos, a característica que eu mais prezava era o destemor que vô Issa demonstrava nos palanques. Não foi à toa que meus ídolos na infância foram Kid Colt e Carlos Lacerda. Com o tempo, a referência dominante passou a ser a coragem silenciosa e sem jactância de um dom Paulo Evaristo Arns.
Olhando para trás, vejo que outra característica que sempre me impressionou foi o discernimento.
Foi essa característica que vi em João, que jogava bola com a gente no São Benedito. Nem me lembro mais do seu sobrenome. Lembro que era judicioso. Acho que foi a primeira pessoa, fora de casa, em quem encontrei essa tremenda qualidade humana: ser judicioso.
Eu ficava encantado com sua segurança e discernimento. Um dia seu cachorrinho entrou em um cercado que havia na caixa d'água que existe no largo do São Benedito. O zelador passou a cobrir o cachorro de pauladas. João assistia impassível. Olhávamos para ele, desnorteados, e ele: "Deixa, o cão mereceu". Quando achou que o sujeito estava exagerando, levantou-se e caminhou em sua direção, com aquele andar lento de John Wayne. O sujeito, velho, parou de bater e liberou o cachorro. João me pareceu, naquele momento, o sujeito mais sábio e influente do mundo. Era um moleque alguns anos mais velho do que eu. Mas dominou o adulto apenas com sua capacidade de discernimento.
Muitas vezes assisti a grandes empresários ou políticos influentes tomando decisões meio à galega. Na condição de quem conviveu e convive com eles e conviveu com João, posso afiançar: o seu índice de discernimento era muito superior ao da média dos homens poderosos, apesar de praticado em pequenos episódios da infância.
Das referências familiares, tenho ainda as tias. Do lado de mãe, não posso mencionar todas, porque oito é muito, e não posso mencionar algumas, porque vai rolar ciumeira. Sobrinho mais velho, filho da irmã mais querida, me cobriram de mimos a infância e a vida toda. Ainda hoje cada qual sabe meu prato predileto, o arroz de forno, o arroz "querido" (como eu chamava o arroz amarelo), a maionese especial, o frango ensopado.
Mas minha referência maior de ternura foi tia Rosita, irmã de meu pai, que até o final da vida conservou seu sotaque argentino. Nas crises da adolescência, ia me refugiar na sua casa, me reconfortar com sua presença, naqueles olhos de cobertor, que, sem nada dizer, cobriam de ternura minha solidão.
Quando Bibi começou a falar, com um ano e pouco, a fala veio acompanhada de um sotaque gozado. Perguntei a Fátima, minha irmã, quem o sotaque lembrava. A Fátima arregalou os olhos: "Nossa, a tia Rosita". Esse olhar continua me acompanhando pelas batalhas da vida.


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