São Paulo, sexta-feira, 18 de outubro de 2002

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LUÍS NASSIF

A Alca e o tiro no pé

Um dos papéis centrais de um presidente da República é a maneira como se coloca ante os governantes estrangeiros. Há que ter um mínimo de conhecimento sobre os temas tratados e sobre a melhor tática de negociação e/ou discussão.
Um dos mais notáveis feitos diplomáticos brasileiros ocorreu em 1952, em plena crise cambial do governo Vargas, quando o jovem embaixador Walter Moreira Salles enfrentou um secretário de Estado norte-americano, representante do recém-eleito governo Eisenhower, que se recusava a bancar um empréstimo ao Brasil negociado com a administração anterior. Numa conversa ocorrida entre a eleição e a posse de Eisenhower, o jovem embaixador peitou o secretário de Estado e desafiou: "Julguei que, quando alguém negocia em nome do governo dos Estados Unidos, é a palavra do país que está em jogo".
Nas negociações internacionais não existe a impessoalidade que se supõe, mesmo quando estão em jogo interesses de países. E, quando se trata de uma potência como os Estados Unidos, mais do que nunca a rede de relações pessoais é relevante. Para tanto, há que ter clareza sobre o jogo de alianças e sobre quem é quem em cada parceiro comercial.
Robert Zoellick, o representante comercial norte-americano, pode ser um aliado fundamental para o Brasil. No governo Bush, com suas inclinações pelo fechamento econômico, é a luz a bradar contra o protecionismo tarifário e a defender a abertura comercial.
Quando indagado se o Brasil negociaria com a Alca, sua resposta nada teve de desafiadora à soberania nacional. Limitou-se a dizer que, se o Brasil não negociar com o maior mercado consumidor do mundo, se demorar a aderir a algum bloco, só lhe restará a Antártida. Não ameaçou o país com marines nem com retaliação comercial. Falou o óbvio.
A reação de Lula, dizendo não falar "com o sub do sub do sub", foi incorreta e desnecessária. Zoellick é um funcionário de alto prestígio. O "sub do sub" era um sub qualquer que, no mesmo evento, condicionou a ajuda norte-americana ao Brasil ao cumprimento das metas com o Fundo Monetário Internacional. Mesmo esse funcionário está no direito dele. Quem empresta impõe as condições.
Essa politização da Alca, inclusive com esse referendo popular, é uma maneira supersticiosa de encarar a questão. Quando o Mercosul começou, as maiores críticas eram contra o fato de o Brasil ser o maior mercado consumidor. Nessa condição, ele seria o prejudicado, e os parceiros menores, beneficiados.
Agora, há a possibilidade de acessar o maior mercado consumidor do mundo, e fica-se nessa visão duplamente supersticiosa. A primeira face da superstição é achar que a simples adesão à Alca salvará o Brasil; a segunda face, considerar que a entrada na Alca, por si, liquidará o país.
Não pode ser assim. A entrada na Alca envolverá um sem-número de setores, alguns ganhando, outros perdendo. É um toma lá, dá cá que poderá ser vantajoso ou não, dependendo da forma de negociação. Se a entrada for mal negociada, será ruim; se for bem negociada, poderá ser a salvação da economia.
A estratégia começa por um levantamento competente dos setores que podem ganhar ou perder com a abertura. Depois, com a montagem da estratégia de negociação, explorando basicamente o conflito de interesses nos próprios Estados Unidos, contrapondo interesses de importadores aos dos exportadores, de consumidores aos dos setores protegidos. Nessa negociação, Zoellick é um aliado imprescindível, posto que adversário de toda forma de protecionismo interno.
Ao atirar em Zoellick, Lula erra o alvo e cria um desgaste gratuito com um interlocutor que pode ser importante quando as negociações forem reabertas. A soberania nacional precisa ser defendida nas negociações propriamente ditas. Não se trata de questão de retórica, mas de estudos que demonstrem onde o interesse nacional poderá ser atendido e onde poderá ser atropelado.

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