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VISÃO DE FORA
O livre comércio deu certo nos países ricos?
MICHAEL PETTIS
Talvez a principal debilidade
do pensamento econômico moderno seja sua pouca fundamentação histórica. O consenso
econômico neoliberal, que hoje
domina a maior parte do mundo, tem entre seus princípios a
idéia de que o livre comércio é
imprescindível para a estratégia
econômica de todo país emergente. Mas não há provas históricas tão claras da necessidade
de livre comércio; e existem,
além disso, algumas evidências
de que os países que passaram
de pobres para ricos completaram essa transição em condições que não condizem com o
consenso.
Neste artigo, quero analisar o
livre comércio historicamente e
sustentar que a realidade é muito mais confusa que a teoria.
Não estou afirmando que o consenso econômico esteja, necessariamente, errado sobre a
questão do livre comércio
-certamente há muitos economistas (sendo o melhor entre
eles Jagdish Bhagwati, da Universidade de Columbia) que argumentam, coerentemente, que
a maioria dos países pobres
nunca vai progredir sem comércio livre. No entanto, é importante apontar a debilidade da
teoria na hora de explicar o
concreto desenvolvimento histórico.
As histórias dos países ricos
tendem a mostrar que eles se
tornaram defensores do livre
comércio global só depois de alcançar altos níveis de produtividade; quase nunca antes disso.
A Inglaterra, por exemplo, que
foi um dos países mais produtivos no mundo nas primeiras décadas do século 18, só desenvolveu a lógica da teoria de livre
comércio já no final do século.
Ainda assim, não se tornou um
país de livre comércio até 1846,
quando foram abolidas as Leis
do Trigo (proteção dos cereais
nacionais). Nessa altura, o produto industrial "per capita" da
Inglaterra já equivalia a duas
vezes e meia o do resto da Europa.
Ao longo desse período, os dirigentes britânicos tiveram uma
visão bastante sofisticada de
seus objetivos comerciais. Nos
séculos 17 e 18, a proteção foi explicitamente usada para acumular capital de investimento,
visando desenvolver a capacidade produtiva inglesa e superar os competidores holandeses.
Ao mesmo tempo, as Leis de Navegação garantiram os mercados norte-americanos para os
fabricantes britânicos. De fato,
o desenvolvimento das colônias
norte-americanas foi uma das
principais causas do rápido
crescimento na Inglaterra do século 18, em comparação com a
França.
Uma vez que a Inglaterra conseguiu a supremacia econômica, suas autoridades começaram a advogar o livre comércio
global. Sustentavam, principalmente com base na sua experiência norte-americana, que
esse seria o melhor caminho para a Inglaterra alcançar vantagens comerciais de status imperial sem incorrer nos custos militares e administrativos.
Nos EUA, depois da Independência (em 1776), era principalmente o Sul que exportava produtos básicos e defendia o livre
comércio; os fabricantes do Norte eram contra. Como a indústria norte-americana estava em
sua infância, os defensores do livre comércio dominaram até
que -após a aprovação da Lei
de Embargo, de Thomas Jefferson, contra os ingleses- o Norte pôde, na primeira década do
século 19, construir um importante parque industrial, aproveitando a retirada forçada dos
ingleses. Logo, políticos do Norte começaram a restringir a
competição britânica na construção naval, nos têxteis, nos
produtos de couro, na fabricação de pregos e em outras indústrias.
O brilhante primeiro secretário da Fazenda, Alexander Hamilton, foi o líder da defesa dos
manufatureiros e o maior responsável pela construção da base industrial que, depois, levou
os EUA ao domínio econômico
mundial. Seu inovador "Relatório sobre os Manufaturados", de
1791, apontou para o Congresso
norte-americano o caminho para alcançar a Inglaterra, deixando atrás sua história de país
atrasado, cheio de agricultores
encrenqueiros e políticos corruptos.
Uma das principais causas da
Guerra de Secessão norte-americana foi o conflito entre o sul
pró-livre comércio e o norte hamiltoniano. Depois da vitória
do Norte e durante o resto do século 19, os EUA apoiaram seus
fabricantes com a proteção das
maiores tarifas sobre importações entre todas as principais
nações daquela época. Passado
muito tempo, já com muito
maior produtividade e sendo a
potência econômica dominante,
os EUA (como a Inglaterra, antes) começaram a defender as
virtudes de um mundo sem barreiras comerciais.
Na Alemanha e no Japão, a
história foi bastante parecida;
só nos últimos tempos ambos se
tornaram paladinos do livre comércio global. No começo do século 19, a Alemanha era uma
região atrasada e essencialmente agrícola, com mercados relativamente abertos e alguns pequenos Estados protecionistas.
Em 1879, Bismarck promoveu
uma reestruturação radical da
política comercial, para desenvolver um parque industrial nacional. Essa política seguiu as
doutrinas do economista alemão Friedrich List, que moldou
explicitamente suas teorias com
base nas idéias de Hamilton, a
quem conheceu nos EUA quando foi forçado a fugir da Alemanha, por defender idéias "radicais". De 1870 a 1914, a Alemanha protecionista experimentou
um enorme boom de capacidade industrial, quadruplicando a
produção de ferro gusa e se tornando a primeira potência industrial no continente europeu.
Décadas depois, o Japão enveredou por um caminho parecido, hoje chamado "modelo japonês", protegendo as indústrias consideradas importantes
para o desenvolvimento.
Apoiou, entre outras, a indústria automobilística e a eletroeletrônica, que no início fabricavam produtos de baixa qualidade e pouca competitividade, antes de desenvolver a qualidade e
a eficiência que hoje a fazem famosa. O modelo japonês foi seguido pela Coréia do Sul, que há
50 anos era um país semelhante
ao Haiti, mas hoje é uma das
maiores histórias de sucesso
neste século, apesar da última
crise.
O sucesso de pequenos países
como Cingapura e Hong Kong
se deve a eles terem tornado
suas economias pólos provedores de serviços para economias
maiores.
Fora isso, é difícil defender a
tese de que a história dos últimos 300 anos mostra que o livre
comércio foi responsável por
transformar países politicamente improdutivos em nações
ricas. Economias abertas que
começaram como países pobres
ficaram, quase todas, atrás da
performance econômica de
competidores mais ricos. Nos
casos de países que já eram pobres e ficaram ricos devido à
maior produtividade industrial,
houve, em quase todos os casos,
períodos protecionistas. Nada
disso mostra necessariamente
que a proteção é valiosa, mas
sugere que os dados históricos
não apóiam a tese da vantagem
do livre comércio para países
menos produtivos.
Num próximo artigo tratarei
do clássico argumento -elaborado pela primeira vez, em sua
forma moderna, por Alexander
Hamilton- segundo o qual o
livre comércio não tem de ser,
necessariamente, a melhor estratégia desenvolvimentista para as economias menos produtivas.
Tradução de
Thomas Nerney
Quem é
MICHAEL PETTIS
norte-americano, 39 anos, mestre em finanças, diretor do banco de investimentos Bear
Stearns e professor-associado de finanças na
Graduate School os Business da Columbia University (EUA).
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