São Paulo, domingo, 18 de outubro de 1998

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VISÃO DE FORA
O livre comércio deu certo nos países ricos?

MICHAEL PETTIS
Talvez a principal debilidade do pensamento econômico moderno seja sua pouca fundamentação histórica. O consenso econômico neoliberal, que hoje domina a maior parte do mundo, tem entre seus princípios a idéia de que o livre comércio é imprescindível para a estratégia econômica de todo país emergente. Mas não há provas históricas tão claras da necessidade de livre comércio; e existem, além disso, algumas evidências de que os países que passaram de pobres para ricos completaram essa transição em condições que não condizem com o consenso.
Neste artigo, quero analisar o livre comércio historicamente e sustentar que a realidade é muito mais confusa que a teoria. Não estou afirmando que o consenso econômico esteja, necessariamente, errado sobre a questão do livre comércio -certamente há muitos economistas (sendo o melhor entre eles Jagdish Bhagwati, da Universidade de Columbia) que argumentam, coerentemente, que a maioria dos países pobres nunca vai progredir sem comércio livre. No entanto, é importante apontar a debilidade da teoria na hora de explicar o concreto desenvolvimento histórico.
As histórias dos países ricos tendem a mostrar que eles se tornaram defensores do livre comércio global só depois de alcançar altos níveis de produtividade; quase nunca antes disso. A Inglaterra, por exemplo, que foi um dos países mais produtivos no mundo nas primeiras décadas do século 18, só desenvolveu a lógica da teoria de livre comércio já no final do século. Ainda assim, não se tornou um país de livre comércio até 1846, quando foram abolidas as Leis do Trigo (proteção dos cereais nacionais). Nessa altura, o produto industrial "per capita" da Inglaterra já equivalia a duas vezes e meia o do resto da Europa.
Ao longo desse período, os dirigentes britânicos tiveram uma visão bastante sofisticada de seus objetivos comerciais. Nos séculos 17 e 18, a proteção foi explicitamente usada para acumular capital de investimento, visando desenvolver a capacidade produtiva inglesa e superar os competidores holandeses. Ao mesmo tempo, as Leis de Navegação garantiram os mercados norte-americanos para os fabricantes britânicos. De fato, o desenvolvimento das colônias norte-americanas foi uma das principais causas do rápido crescimento na Inglaterra do século 18, em comparação com a França.
Uma vez que a Inglaterra conseguiu a supremacia econômica, suas autoridades começaram a advogar o livre comércio global. Sustentavam, principalmente com base na sua experiência norte-americana, que esse seria o melhor caminho para a Inglaterra alcançar vantagens comerciais de status imperial sem incorrer nos custos militares e administrativos.
Nos EUA, depois da Independência (em 1776), era principalmente o Sul que exportava produtos básicos e defendia o livre comércio; os fabricantes do Norte eram contra. Como a indústria norte-americana estava em sua infância, os defensores do livre comércio dominaram até que -após a aprovação da Lei de Embargo, de Thomas Jefferson, contra os ingleses- o Norte pôde, na primeira década do século 19, construir um importante parque industrial, aproveitando a retirada forçada dos ingleses. Logo, políticos do Norte começaram a restringir a competição britânica na construção naval, nos têxteis, nos produtos de couro, na fabricação de pregos e em outras indústrias.
O brilhante primeiro secretário da Fazenda, Alexander Hamilton, foi o líder da defesa dos manufatureiros e o maior responsável pela construção da base industrial que, depois, levou os EUA ao domínio econômico mundial. Seu inovador "Relatório sobre os Manufaturados", de 1791, apontou para o Congresso norte-americano o caminho para alcançar a Inglaterra, deixando atrás sua história de país atrasado, cheio de agricultores encrenqueiros e políticos corruptos.
Uma das principais causas da Guerra de Secessão norte-americana foi o conflito entre o sul pró-livre comércio e o norte hamiltoniano. Depois da vitória do Norte e durante o resto do século 19, os EUA apoiaram seus fabricantes com a proteção das maiores tarifas sobre importações entre todas as principais nações daquela época. Passado muito tempo, já com muito maior produtividade e sendo a potência econômica dominante, os EUA (como a Inglaterra, antes) começaram a defender as virtudes de um mundo sem barreiras comerciais.
Na Alemanha e no Japão, a história foi bastante parecida; só nos últimos tempos ambos se tornaram paladinos do livre comércio global. No começo do século 19, a Alemanha era uma região atrasada e essencialmente agrícola, com mercados relativamente abertos e alguns pequenos Estados protecionistas. Em 1879, Bismarck promoveu uma reestruturação radical da política comercial, para desenvolver um parque industrial nacional. Essa política seguiu as doutrinas do economista alemão Friedrich List, que moldou explicitamente suas teorias com base nas idéias de Hamilton, a quem conheceu nos EUA quando foi forçado a fugir da Alemanha, por defender idéias "radicais". De 1870 a 1914, a Alemanha protecionista experimentou um enorme boom de capacidade industrial, quadruplicando a produção de ferro gusa e se tornando a primeira potência industrial no continente europeu.
Décadas depois, o Japão enveredou por um caminho parecido, hoje chamado "modelo japonês", protegendo as indústrias consideradas importantes para o desenvolvimento. Apoiou, entre outras, a indústria automobilística e a eletroeletrônica, que no início fabricavam produtos de baixa qualidade e pouca competitividade, antes de desenvolver a qualidade e a eficiência que hoje a fazem famosa. O modelo japonês foi seguido pela Coréia do Sul, que há 50 anos era um país semelhante ao Haiti, mas hoje é uma das maiores histórias de sucesso neste século, apesar da última crise.
O sucesso de pequenos países como Cingapura e Hong Kong se deve a eles terem tornado suas economias pólos provedores de serviços para economias maiores.
Fora isso, é difícil defender a tese de que a história dos últimos 300 anos mostra que o livre comércio foi responsável por transformar países politicamente improdutivos em nações ricas. Economias abertas que começaram como países pobres ficaram, quase todas, atrás da performance econômica de competidores mais ricos. Nos casos de países que já eram pobres e ficaram ricos devido à maior produtividade industrial, houve, em quase todos os casos, períodos protecionistas. Nada disso mostra necessariamente que a proteção é valiosa, mas sugere que os dados históricos não apóiam a tese da vantagem do livre comércio para países menos produtivos.
Num próximo artigo tratarei do clássico argumento -elaborado pela primeira vez, em sua forma moderna, por Alexander Hamilton- segundo o qual o livre comércio não tem de ser, necessariamente, a melhor estratégia desenvolvimentista para as economias menos produtivas.


Tradução de Thomas Nerney
Quem é MICHAEL PETTIS norte-americano, 39 anos, mestre em finanças, diretor do banco de investimentos Bear Stearns e professor-associado de finanças na Graduate School os Business da Columbia University (EUA).



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