São Paulo, domingo, 18 de outubro de 1998

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Os desempresários

ALOIZIO MERCADANTE
Quando participamos de uma campanha eleitoral como esta que se encerrou, passamos quase todo o tempo nas ruas com o povo. A tragédia do desemprego vai moendo a gente por dentro. A monótona humilhação dos desempregados é indescritível. Tenho encontrado alguns que a profissão é procurar emprego, outros que simplesmente desistiram. Tantos que se degradaram e todo o projeto de vida é a próxima refeição, ou encontrar um lugar melhor para dormir entre os viadutos e os escuros becos do centro da cidade.
Com o agravamento da crise, a perda de reservas cambiais superior a US$ 30 bilhões, as negociações com o FMI, o aumento de impostos que acompanhará o novo pacote, o corte de gastos sociais e esse patamar criminoso dos juros teremos um agravamento brutal da recessão e com ela do desemprego. Mas descobri um novo segmento nessa imensa multidão de deserdados -os desempresários. São aqueles que foram empresários, quase sempre micro ou pequeno, e agora não são mais nada. Os depoimentos são impressionantes. O processo para se tornar um desempresário é lento e solitário. As vendas começam a cair, o faturamento diminui, a margem de lucro desaparece e não há mais recursos para investimentos. A atitude para reverter o cenário de concordata é recorrer ao banco. No começo uma sensação de alívio, tudo parece melhorar. Em casa dá para adiar mais uma vez as medidas de austeridade. Nada como poupar a mulher e os filhos do rebaixamento social. O país vai melhorar, nem pensar em dificuldades, isso é conversa furada da oposição. Então, começam a aparecer as prestações, a dívida vai aumentando e o faturamento sempre minguando.
Um novo passo é dado. Suspender o pagamento dos impostos, quando for possível a gente negocia os débitos fiscais. Sonegar um pouco, todo mundo sonega, só que agora é questão de sobrevivência. A empresa logo depois deixa de pagar os fornecedores e então começa a atrasar salários. Finalmente, aparecem os oficiais de justiça, penhorando tudo.
O mundo vai desabando ao redor. Em casa é o fim do cartão de crédito, a venda do carro do filho, encaminhar as crianças para escola pública, tentar vender o título do clube e assumir o papel de caloteiro e incompetente. A falência não apenas é uma figura jurídica, é uma trágica novela pessoal e familiar. Alguns perdem até a paixão pela esposa, nem Viagra resolve.
O trabalhador quando é demitido recebe os encargos trabalhistas e o seguro-desemprego. O desempresário não, fica devendo na praça e com o nome sujo. É verdade que há as falências fraudulentas e os picaretas inescrupulosos, duro é tentar explicar para os vizinhos e conhecidos que você não é um deles. Para os micro e pequenos a condição de desempresário é tão trágica quanto a dos desempregados. E quando você apresenta seu currículo para uma empresa, tentando explicar as razões da falência, o departamento de RH não preenche nem a ficha. A associação comercial e o sindicato industrial dão baixa na carteira. Você finalmente é um desempresário.
O presidente FHC deixará uma grande contribuição ao sociólogo FHC, porque ao bater o recorde histórico de desemprego no Brasil, certamente é recordista de desempresários, ainda que esta categoria oculta socialmente nunca tenha sido estudada ou quantificada. E as perspectivas para 1999 são de aumento significativo deste imenso contingente, que certamente será engrossado por alguns grandes empresários endividados em dólar.
Em Marília, um grupo de desempresários criou o SOS-Empresário, uma espécie de Alcoólicos Anônimos, para tentar reagir. Se os grandes, que já foram um baluarte da Fiesp como Mindlim, da Metal Leve, Kasinski, da Cofap, e tantos outros desempresários com posse, tivessem gritado, talvez o rumo do país fosse outro.
Como já escrevi tantas vezes, a crise financeira internacional está longe de se resolver. E o Brasil, que subordinou toda a lógica da política econômica na dependência de capitais especulativos externos precisa mudar de rumo. Deveria ter defendido suas reservas cambiais, com medidas transitórias, mas que evitassem colocar o país nessa posição de pedinte desesperado diante do sistema financeiro internacional. Como já fizemos no passado, especialmente na crise de 1929, deveríamos buscar uma resposta criativa de defesa da produção e do emprego. Estimular a produção agrícola seria fundamental, mas o período do plantio era até 15 de outubro e os recursos prometidos de R$ 10 bilhões para o crédito agrícola não foram liberados e provavelmente teremos uma nova redução de safra para 1999. Racionalizar a abertura comercial utilizando as modernas salvaguardas que poderiam impedir o importabando que desarticulou importantes setores da economia. Igualmente importante seria a definição de uma política industrial ativa e uma reforma tributária. Reorientar as fontes de financiamento públicas como o BNDES para a produção e não privatizações. Democratizar a política econômica e industrial reativando as câmaras setoriais e desmontar cuidadosamente a armadilha câmbio-juros seria decisivo para alavancar o potencial de exportação e crescimento do país.
Enquanto isso, os atuais e os futuros desempresários precisavam criar coragem de se unir aos trabalhadores em um novo projeto nacional de desenvolvimento.
Inaceitável é esse sabor de vergonha e passividade que acompanha os desempresários e o silêncio cúmplice das entidades empresariais com esse governo que impôs ao país o retorno ao FMI e promove o reencontro da nação com a década perdida dos anos 80.


Aloizio Mercadante Oliva, 44, economista, é professor na Unicamp e na PUC-SP. Foi deputado federal e candidato a vice-presidente da República em 94 na chapa com Lula. É vice-presidente nacional do PT e deputado federal eleito nas últimas eleições.



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