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OPINIÃO ECONÔMICA
Ilusões perdidas
RUBENS RICUPERO
Ilusões perdidas, ocasiões
desperdiçadas, tudo no final
dá na mesma. Na vida das pessoas, como na história do desenvolvimento, os erros às vezes não
têm conserto, não se podendo
contar com uma segunda chance.
As janelas de oportunidade, que
em certos momentos se entreabrem, não vão ficar abertas para
sempre. Foi esse o caso de dois dos
maiores fracassos na tentativa
brasileira de criar uma base industrial integrada: a da política
de informática e a da indústria
química e farmacêutica.
Não é por acaso que esses dois
setores são, combinados, os maiores responsáveis pelo déficit que se
acumulou na balança comercial.
Três décadas atrás, era já claro
aos nossos economistas industriais que a eletrônica e a química
fina constituíam o essencial da
fronteira tecnológica. Áreas dinâmicas por excelência, elas é que
iriam decidir se um país seria capaz de incorporar valor agregado
a seus produtos ou se permaneceria condenado a fornecer mercadorias de demanda estagnada e
preços em baixa. Alguns países
que, na época, partiram de base
industrial inferior à brasileira tiveram êxito: Taiwan e Coréia do
Sul, de início, em tecnologia eletrônica, mais tarde a Índia, em
"software".
Antes que o acordo Trips sobre
propriedade intelectual trouxesse
dificuldades novas, mediante o
reforço das patentes para processos e produtos farmacêuticos, a
Índia tinha criado laboratórios
capazes de fabricar moléculas
complexas e a indústria sul-coreana abastecia 90% do consumo
de remédios na Coréia.
O Brasil perdeu o bonde nos
dois casos. A desmantelada lei de
informática deixou custo alto e
herança negativa.
Em 1989, antes do endurecimento do regime de patentes, os
laboratórios nacionais só representavam 15% do mercado brasileiro: 85% estavam já em mãos
das transnacionais, mesmo com
patentes fracas. Como se chegou a
esse fiasco? Pelo efeito desorganizador e desnacionalizador de inflação crônica elevada, somado
aos defeitos no desenho e na aplicação de políticas. A lição da experiência brasileira é que a qualidade das políticas públicas -
macro e micro- faz a diferença
entre o sucesso e o fracasso.
Perdemos o bonde, mas não a
esperança. No momento em que
se reacendem as esperanças com
a renovação do governo, é bom
que se refresquem as lições de passados equívocos. Sobre tal base, é
preciso edificar sobre política macroeconômica de estabilidade e
crescimento um esforço de desenvolver capacidade nacional inovadora em tecnologia.
Desta vez, não estarão mais disponíveis algumas possibilidades
que existiam antes, como a "engenharia reversa", a facilidade de
copiar e imitar, a frouxidão das
patentes. É pena, porque não poderemos recorrer às políticas largamente usadas no passado pelos
EUA, pelos europeus, pelo Japão,
pela Coréia do Sul, pela Índia.
Não adianta chorar sobre o leite
derramado. O importante é evitar
que novas restrições se venham a
somar às impostas pela Rodada
Uruguai.
Esse é o perigo imediato das negociações, tanto de Genebra
quanto da Alca, em questões não
de acesso a mercado, mas de adoção de normas regulatórias.
Chorar não adianta, mas não é
demais conhecer as boas razões
que temos para derramar lágrimas. O Brasil e a Índia foram os
líderes da resistência a negociar
no Gatt regras de propriedade intelectual.
Pensávamos que o assunto não
tinha relação direta com o comércio, existindo para tanto um foro
adequado, a Ompi (Organização
Mundial de Propriedade Intelectual). Era responsabilidade da
Ompi cuidar da Convenção de
Paris, sobre patentes, e da de Berna, sobre direitos de autor. Aliás,
os americanos foram, durante o
século 19, grandes violadores do
"copyright". Charles Dickens ficou tão desesperado com as edições piratas de seus livros nos
EUA que, em meados daquele século, realizou extensa turnê pelo
país, tentando persuadir os ianques a proteger seus direitos. Perdeu a parada, pois só quase 50
anos depois os americanos aderiram ao sistema, mesmo assim
com restrições. Isso não os impediu de, na Rodada Uruguai, impor o acordo Trips, apesar da
oposição brasileiro-indiana.
É esse malfadado acordo que se
encontra na origem do problema
das patentes como causa do alto
custo do tratamento da Aids. Hoje, o guru da liberalização comercial, o professor de Colúmbia, Jagdish Bagwhati, afirma categoricamente que o Trips nunca deveria ter sido incorporado à OMC
(Organização Mundial do Comércio) e que está na hora de desfazer o erro. Outro dos grandes
economistas do comércio, J. Michael Finger, antes do Banco
Mundial e ora no conservador
American Enterprise Institute,
vai mais longe. Sustenta com dados que as patentes de Trips deram aos EUA ganhos 13 vezes
maiores dos que os oriundos da
redução de tarifas industriais. No
extremo oposto, para os três países em desenvolvimento sobre os
quais há estatísticas completas, as
estimativas dos pagamentos de
"royalties" a que passarão a ser
obrigados superam várias vezes
seus possíveis ganhos nas tarifas
industriais dos produtos que exportam. O caso mais impressionante é o da Coréia do Sul, cujas
obrigações derivadas de Trips são
18 vezes superiores a seus ganhos.
Outros exemplos são o México
(sete vezes mais) e a China Popular (4,7). Calcula-se que o Brasil
terá de pagar US$ 530 milhões a
mais. Finger estima os pagamentos totais dos subdesenvolvidos,
devido a Trips, em US$ 60 bilhões
por ano! É uma transferência maciça de renda dos mais pobres aos
mais ricos. Subscrevo a conclusão
de Finger: nunca aceitar trocar
laranjas por maçãs, isto é, oferecer concessões em normas em troca de acesso de mercado para produtos industriais e agrícolas. É
quase impossível estabelecer comparação entre elementos dessemelhantes. O melhor, portanto,
na OMC e na Alca, é se concentrar no tangível: agricultura, tarifas industriais, serviços.
Se for difícil anular Trips, evitemos ao menos agravar a situação.
Ou então, só resta tocar um tango
argentino, o que seria apropriado, pois, segundo o estudo citado,
a Argentina foi um dos grandes
perdedores líquidos em propriedade intelectual.
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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