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São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Ilusões perdidas

RUBENS RICUPERO

Ilusões perdidas, ocasiões desperdiçadas, tudo no final dá na mesma. Na vida das pessoas, como na história do desenvolvimento, os erros às vezes não têm conserto, não se podendo contar com uma segunda chance. As janelas de oportunidade, que em certos momentos se entreabrem, não vão ficar abertas para sempre. Foi esse o caso de dois dos maiores fracassos na tentativa brasileira de criar uma base industrial integrada: a da política de informática e a da indústria química e farmacêutica.
Não é por acaso que esses dois setores são, combinados, os maiores responsáveis pelo déficit que se acumulou na balança comercial.
Três décadas atrás, era já claro aos nossos economistas industriais que a eletrônica e a química fina constituíam o essencial da fronteira tecnológica. Áreas dinâmicas por excelência, elas é que iriam decidir se um país seria capaz de incorporar valor agregado a seus produtos ou se permaneceria condenado a fornecer mercadorias de demanda estagnada e preços em baixa. Alguns países que, na época, partiram de base industrial inferior à brasileira tiveram êxito: Taiwan e Coréia do Sul, de início, em tecnologia eletrônica, mais tarde a Índia, em "software".
Antes que o acordo Trips sobre propriedade intelectual trouxesse dificuldades novas, mediante o reforço das patentes para processos e produtos farmacêuticos, a Índia tinha criado laboratórios capazes de fabricar moléculas complexas e a indústria sul-coreana abastecia 90% do consumo de remédios na Coréia.
O Brasil perdeu o bonde nos dois casos. A desmantelada lei de informática deixou custo alto e herança negativa.
Em 1989, antes do endurecimento do regime de patentes, os laboratórios nacionais só representavam 15% do mercado brasileiro: 85% estavam já em mãos das transnacionais, mesmo com patentes fracas. Como se chegou a esse fiasco? Pelo efeito desorganizador e desnacionalizador de inflação crônica elevada, somado aos defeitos no desenho e na aplicação de políticas. A lição da experiência brasileira é que a qualidade das políticas públicas - macro e micro- faz a diferença entre o sucesso e o fracasso.
Perdemos o bonde, mas não a esperança. No momento em que se reacendem as esperanças com a renovação do governo, é bom que se refresquem as lições de passados equívocos. Sobre tal base, é preciso edificar sobre política macroeconômica de estabilidade e crescimento um esforço de desenvolver capacidade nacional inovadora em tecnologia.
Desta vez, não estarão mais disponíveis algumas possibilidades que existiam antes, como a "engenharia reversa", a facilidade de copiar e imitar, a frouxidão das patentes. É pena, porque não poderemos recorrer às políticas largamente usadas no passado pelos EUA, pelos europeus, pelo Japão, pela Coréia do Sul, pela Índia. Não adianta chorar sobre o leite derramado. O importante é evitar que novas restrições se venham a somar às impostas pela Rodada Uruguai.
Esse é o perigo imediato das negociações, tanto de Genebra quanto da Alca, em questões não de acesso a mercado, mas de adoção de normas regulatórias.
Chorar não adianta, mas não é demais conhecer as boas razões que temos para derramar lágrimas. O Brasil e a Índia foram os líderes da resistência a negociar no Gatt regras de propriedade intelectual.
Pensávamos que o assunto não tinha relação direta com o comércio, existindo para tanto um foro adequado, a Ompi (Organização Mundial de Propriedade Intelectual). Era responsabilidade da Ompi cuidar da Convenção de Paris, sobre patentes, e da de Berna, sobre direitos de autor. Aliás, os americanos foram, durante o século 19, grandes violadores do "copyright". Charles Dickens ficou tão desesperado com as edições piratas de seus livros nos EUA que, em meados daquele século, realizou extensa turnê pelo país, tentando persuadir os ianques a proteger seus direitos. Perdeu a parada, pois só quase 50 anos depois os americanos aderiram ao sistema, mesmo assim com restrições. Isso não os impediu de, na Rodada Uruguai, impor o acordo Trips, apesar da oposição brasileiro-indiana.
É esse malfadado acordo que se encontra na origem do problema das patentes como causa do alto custo do tratamento da Aids. Hoje, o guru da liberalização comercial, o professor de Colúmbia, Jagdish Bagwhati, afirma categoricamente que o Trips nunca deveria ter sido incorporado à OMC (Organização Mundial do Comércio) e que está na hora de desfazer o erro. Outro dos grandes economistas do comércio, J. Michael Finger, antes do Banco Mundial e ora no conservador American Enterprise Institute, vai mais longe. Sustenta com dados que as patentes de Trips deram aos EUA ganhos 13 vezes maiores dos que os oriundos da redução de tarifas industriais. No extremo oposto, para os três países em desenvolvimento sobre os quais há estatísticas completas, as estimativas dos pagamentos de "royalties" a que passarão a ser obrigados superam várias vezes seus possíveis ganhos nas tarifas industriais dos produtos que exportam. O caso mais impressionante é o da Coréia do Sul, cujas obrigações derivadas de Trips são 18 vezes superiores a seus ganhos. Outros exemplos são o México (sete vezes mais) e a China Popular (4,7). Calcula-se que o Brasil terá de pagar US$ 530 milhões a mais. Finger estima os pagamentos totais dos subdesenvolvidos, devido a Trips, em US$ 60 bilhões por ano! É uma transferência maciça de renda dos mais pobres aos mais ricos. Subscrevo a conclusão de Finger: nunca aceitar trocar laranjas por maçãs, isto é, oferecer concessões em normas em troca de acesso de mercado para produtos industriais e agrícolas. É quase impossível estabelecer comparação entre elementos dessemelhantes. O melhor, portanto, na OMC e na Alca, é se concentrar no tangível: agricultura, tarifas industriais, serviços.
Se for difícil anular Trips, evitemos ao menos agravar a situação. Ou então, só resta tocar um tango argentino, o que seria apropriado, pois, segundo o estudo citado, a Argentina foi um dos grandes perdedores líquidos em propriedade intelectual.


Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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