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ARTIGO
Previdência: um contrato leonino
HÉLIO ZYLBERSTAJN
A Constituição de 1988 alterou as antigas regras de
concessão de aposentadorias e
benefícios previdenciários. Os
constituintes quiseram amparar
os trabalhadores na velhice, mas
acabaram acelerando a deterioração do sistema de seguridade social brasileiro.
Entre outubro de 1988 e setembro de 2001, a renda mensal da
população cresceu 75% em termos reais. A parte dessa renda
que vem das aposentadorias e
pensões cresceu 245%, enquanto
a parcela formada por todas as
outras fontes de renda cresceu
apenas 57%. Ou seja, as aposentadorias e pensões cresceram quatro vezes mais que as demais fontes de renda (leia quadro).
Como consequência, a composição da renda mensal se alterou
bastante. Em 1988, as aposentadorias e pensões eram 10% do total da renda mensal dos brasileiros. Em 2001, a participação das
aposentadorias e pensões praticamente dobrou, pulando para
19%.
A partir da Constituição de
1988, em 13 anos a composição da
renda mensal dos brasileiros sofreu uma transformação significativa. As despesas com benefícios previdenciários aumentaram
bem mais do que a renda do conjunto da população brasileira.
Para fazer frente a essas despesas crescentes, o Estado brasileiro
tem que usar proporções cada vez
maiores de sua arrecadação, reduzindo sua capacidade de implementar outras políticas e agravando a crise fiscal.
Como a arrecadação é insuficiente, o governo toma emprestado do setor privado, a taxas de juros enormes. Os juros altos inibem os investimentos produtivos,
freiam o crescimento econômico,
a expansão do emprego e o aumento dos salários. Além disso,
aumentam a dívida pública e realimentam a crise fiscal. Enfim, os
direitos adquiridos pelos aposentados estão na raiz dos nossos
problemas.
Os benefícios dos aposentados
sufocam o restante da população.
Oneram abusivamente os demais
cidadãos, impedindo o crescimento da economia e a melhoria
da condição social dos mais necessitados. Essa é a interpretação
econômica para os dados acima.
É uma situação dramática, que
precisa ser mudada, para retomarmos o crescimento e a capacidade de promover a equidade.
Como poderíamos interpretar a
situação na perspectiva do Direito? Sob a perspectiva do Direito, a
Constituição é uma espécie de
contrato que todos os cidadãos
firmaram. Acontece que algumas
das cláusulas desse contrato revelaram-se injustas para uma parte
dos signatários.
A Constituição estabelece que
os não-aposentados devem transferir recursos para os aposentados. Mas os não-aposentados não
têm capacidade econômica para
cumprir essas obrigações. Quando uma cláusula provoca uma situação em que uma das partes
não pode cumprir o contrato, o
juiz pode promover sua revisão
sob o argumento da onerosidade
excessiva. E, quando uma cláusula desse tipo é imposta à outra
parte, ela se transfigura em uma
cláusula leonina. Cláusulas leoninas são consideradas nulas de pleno direito.
Os artigos da Constituição de
1988 que tratam da Previdência
estão onerando excessivamente
os não-aposentados. Na medida
em que seus beneficiários impedem a reforma da Previdência, estão transformando nossa Constituição em um contrato leonino.
Vistos sob esse ângulo, os direitos
dos aposentados deixam de ser
intocáveis.
Para que o Estado brasileiro
promova as políticas sociais que
todos desejamos, será preciso interpretar nossa Constituição a
partir da perspectiva da justiça social. Se os juízes a interpretarem
sob essa ótica, será sim possível
reformar a Previdência, sem revolução.
Os juízes têm esse poder. Resta
saber se terão a grandeza compatível com o tamanho de seu poder.
Hélio Zylberstajn, 57, é professor da
Faculdade de Economia e Administração
da USP e coordenador do Programa Mediar - Informações para a mediação estratégica entre trabalho e capital, da Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas). O autor agradece os comentários do jurista dr. Bernardo Szyflinger sobre a versão preliminar deste artigo.
Hoje, excepcionalmente, não é publicada a seção "Lições Contemporâneas".
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