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São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 2003

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ARTIGO

Previdência: um contrato leonino

HÉLIO ZYLBERSTAJN

A Constituição de 1988 alterou as antigas regras de concessão de aposentadorias e benefícios previdenciários. Os constituintes quiseram amparar os trabalhadores na velhice, mas acabaram acelerando a deterioração do sistema de seguridade social brasileiro.
Entre outubro de 1988 e setembro de 2001, a renda mensal da população cresceu 75% em termos reais. A parte dessa renda que vem das aposentadorias e pensões cresceu 245%, enquanto a parcela formada por todas as outras fontes de renda cresceu apenas 57%. Ou seja, as aposentadorias e pensões cresceram quatro vezes mais que as demais fontes de renda (leia quadro).
Como consequência, a composição da renda mensal se alterou bastante. Em 1988, as aposentadorias e pensões eram 10% do total da renda mensal dos brasileiros. Em 2001, a participação das aposentadorias e pensões praticamente dobrou, pulando para 19%.
A partir da Constituição de 1988, em 13 anos a composição da renda mensal dos brasileiros sofreu uma transformação significativa. As despesas com benefícios previdenciários aumentaram bem mais do que a renda do conjunto da população brasileira.
Para fazer frente a essas despesas crescentes, o Estado brasileiro tem que usar proporções cada vez maiores de sua arrecadação, reduzindo sua capacidade de implementar outras políticas e agravando a crise fiscal.
Como a arrecadação é insuficiente, o governo toma emprestado do setor privado, a taxas de juros enormes. Os juros altos inibem os investimentos produtivos, freiam o crescimento econômico, a expansão do emprego e o aumento dos salários. Além disso, aumentam a dívida pública e realimentam a crise fiscal. Enfim, os direitos adquiridos pelos aposentados estão na raiz dos nossos problemas.
Os benefícios dos aposentados sufocam o restante da população. Oneram abusivamente os demais cidadãos, impedindo o crescimento da economia e a melhoria da condição social dos mais necessitados. Essa é a interpretação econômica para os dados acima. É uma situação dramática, que precisa ser mudada, para retomarmos o crescimento e a capacidade de promover a equidade.
Como poderíamos interpretar a situação na perspectiva do Direito? Sob a perspectiva do Direito, a Constituição é uma espécie de contrato que todos os cidadãos firmaram. Acontece que algumas das cláusulas desse contrato revelaram-se injustas para uma parte dos signatários.
A Constituição estabelece que os não-aposentados devem transferir recursos para os aposentados. Mas os não-aposentados não têm capacidade econômica para cumprir essas obrigações. Quando uma cláusula provoca uma situação em que uma das partes não pode cumprir o contrato, o juiz pode promover sua revisão sob o argumento da onerosidade excessiva. E, quando uma cláusula desse tipo é imposta à outra parte, ela se transfigura em uma cláusula leonina. Cláusulas leoninas são consideradas nulas de pleno direito.
Os artigos da Constituição de 1988 que tratam da Previdência estão onerando excessivamente os não-aposentados. Na medida em que seus beneficiários impedem a reforma da Previdência, estão transformando nossa Constituição em um contrato leonino. Vistos sob esse ângulo, os direitos dos aposentados deixam de ser intocáveis.
Para que o Estado brasileiro promova as políticas sociais que todos desejamos, será preciso interpretar nossa Constituição a partir da perspectiva da justiça social. Se os juízes a interpretarem sob essa ótica, será sim possível reformar a Previdência, sem revolução.
Os juízes têm esse poder. Resta saber se terão a grandeza compatível com o tamanho de seu poder.


Hélio Zylberstajn, 57, é professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e coordenador do Programa Mediar - Informações para a mediação estratégica entre trabalho e capital, da Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas). O autor agradece os comentários do jurista dr. Bernardo Szyflinger sobre a versão preliminar deste artigo.


Hoje, excepcionalmente, não é publicada a seção "Lições Contemporâneas".


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