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São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 2003

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LUÍS NASSIF

Os amigos Francisco e Augusto

Francisco Clementino San Thiago Dantas e Augusto Frederico Schmidt nasceram amigos, mas a vida os separou. Eram muito parecidos para se darem bem. Ambos eram brilhantes, tinham veleidades políticas, literárias, diplomáticas e econômicas. Entraram juntos na política e juntos se desencantaram, tornaram-se discípulos do pensador católico Jackson de Figueiredo, abraçaram o integralismo.
Depois, a vida os foi conduzindo para campos opostos. Schmidt explodiu primeiro. Nos anos 30 já era poeta consagrado, nos anos 40 tinha enorme influência nas áreas pública e empresarial, controlava a poderosa Cexim, que autorizava todas as exportações e importações do país. Montou o Disco, primeiro supermercado do país. No governo JK, sua influência atingiu o auge,
De seu círculo de discípulos faziam partes diplomatas influentes, como o delfim Paulo de Tarso Flexa de Lima, a nata do mundo político (entre seus integrantes o iniciante deputado Antonio Carlos Magalhães) e a imprensa, a começar por seu amigo Roberto Marinho. Escrevia todos os discursos de JK. De sua imaginação exuberante saiu a Operação Panamericana (OPA), primeira tentativa da diplomacia brasileira de firmar liderança no continente.
San Thiago começou depois. Desde sempre já era considerado o mais brilhante professor da Faculdade Nacional de Direito. Fez uma incursão literária de sucesso -um ensaio sobre "D. Quixote", de Cervantes-, mas não persistiu. Não tinha dom de ganhar dinheiro, nem paciência para fazer política, até que a mosca azul o picou, a partir da amizade com o banqueiro Walther Moreira Salles.
Doutor Walther abriu-lhe as portas do mundo político (ao apresentá-lo a Getúlio Vargas), do mundo empresarial e do mundo do dinheiro. Como diretor do banco, San Thiago ajudou nos negócios de Moreira Salles, conferindo clareza jurídica a um mundo de operações modernas que a economia brasileira praticamente desconhecia. Seu círculo de influência passava também por jovens itamaratecas, como Marcílio Marques Moreira, e jovens advogados militantes, como José Gregori.
Os escritórios dos dois amigos foram crescendo, sua influência aumentando, seu círculo de relações políticas se ampliando e, na mesma proporção, aumentando sua rivalidade. Em um certo momento, o único ponto de contato entre ambos era Jorge Serpa, o misterioso personagem do mundo político carioca.
Posto que humanos, ao lado de qualidade enormes, eram vítimas dos defeitos da vaidade excessiva e da ambição política.
Schmidt era explosivo, língua solta, ferino, agressivo. San Thiago era cartesiano ao extremo, discreto, mas, à medida que foi enriquecendo, a discrição foi cedendo lugar a um deslumbramento que, por vezes, decepcionava até seu amigo Moreira Salles. Cismou de se tornar criador de cavalo, passou a ambicionar a presidência do Jockey Club, comprou o "Jornal do Comércio" e passou a fazer carreira política.
Acabou o governo JK, veio o governo Jânio, começou a turbulenta fase do governo Jango. A esta altura, San Thiago era um cometa que incendiava o país inteiro com seu cartesianismo, com sua proposta de esquerda positiva.
Schmidt apoiou inicialmente o golpe de 1964. San Thiago esteve na primeira lista de cassação. Não foi cassado porque àquela altura já se sabia de um câncer devastador que tomara seu corpo. E San Thiago deu início a uma última rodada de despedida dos amigos.
Aí os amigos Mauro Salles e José Gregori resolveram fazer a conspiração positiva. Usaram como álibi a condição imposta pelo livreiro José Olintho para o relançamento do "Canto Brasileiro", de Schmidt: que o prefácio fosse de San Thiago.
Na véspera da última viagem de San Thiago, a Paris, onde se despediria de Walther Moreira Salles, Mauro foi até a casa de Schmidt, Gregori à de San Thiago. Mauro pegou o telefone e ligou para San Thiago. Ele atendeu, e Mauro passou o fone a Schmidt. Nas duas casas, os dois conspiradores prenderam a respiração e guardaram consigo, e guardarão até o final de seus dias, as primeiras palavras de reconciliação dos dois amigos eternos:
"Alô, Francisco."
"Como vai, Augusto?"
Francisco morreu em 1964. Augusto, um ano depois.
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