São Paulo, domingo, 19 de março de 2000


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LUÍS NASSIF
O homem que serenou

Um dos meus maiores sonhos de consumo musical foi conhecer o grupo de compositores autenticamente carioca que dominou a cena musical brasileira dos anos 30 até o advento da bossa nova. Não apenas os que se tornaram nomes nacionais -como Joubert de Carvalho e João de Barro-, mas seus parceiros e companheiros, como Alberto Ribeiro, Klecius Caldas, Armando Cavalcanti, J. Cascata, Paquito, Romeu Gentil, Paulo Soledade, Zé com Fome e Haroldo Barbosa, entre outros.
Nenhum deles me provocava maior emoção, no entanto, que Antônio Almeida. Isso mesmo antes de eu saber que eram de sua autoria três de minhas músicas inesquecíveis:
"Serenô" ("serenô, eu caio, eu caio/ serenô deixa cair"), "A Saudade Mata a Gente" ("Fiz meu rancho na beira do rio/ meu amor foi comigo morar", de 1947, com João de Barro) e "Doralice" ("Ó Doralice, eu bem que lhe disse/ amar é tolice/ é bobagem, ilusão", de 1945, com Dorival Caymmi).
Compositor preferido dos conjuntos vocais dos anos 40, junto com Janet de Almeida e Geraldo Pereira, entre outros, Antônio Almeida teve influência decisiva na formação de João Gilberto e constituiu uma das principais pontes que ligou a nova bossa, que surgia, com a velha bossa, que se eternizava.
Nasceu em Vila Isabel, em 1911. Morreu no Rio, em 1985. Para mim, tinha que era há menos tempo. Só me lembrava que foi pouco tempo depois de eu ter pedido ao meu amigo Pelão um encontro com ele. Até então, o Antônio Almeida que me fascinava era o autor de dois sambas sincopados da melhor qualidade: o "Amanhã eu Volto" ("amanhã eu volto/ porque eu hoje já te aturei demais/ você não resolve não/ não sou doce pra limão", de 1942, com Roberto Martins) e o "Volta pra Casa, Emília" (um outro "Emília", quentíssimo: "hoje eu vivo sozinho/ não tenho paz nem amor/ volta pra casa Emília/ senão eu morro de dor", com Wilson Baptista). Nas rodas de samba do grupo, sempre foram os sambas prediletos.
Parceiro dos maiores compositores nacionais como os já mencionados -João de Barro, Caymmi, Wilson, André Filho, Ataulfo-, Antônio Almeida sempre foi um personagem apagado, pelo menos para os que não frequentaram o Rio de seu tempo. A histórica coleção de MPB em fascículos, da Abril, a obra editorial mais importante sobre o tema que minha geração curtiu, pouca coisa avança na biografia de Almeida.
Na "Enciclopédia da Música Popular", fico sabendo que desde jovem Almeida frequentava gafieira, ranchos e blocos, tendo chegado a conhecer Sinhô na famosa sociedade carnavalesca Kananga do Japão. Em 1932 iniciou carreira de cantor, apresentando-se no programa "No Outro Mundo", de Renato Murce, na rádio Philips, do Rio.
Junto com o maestro Jerônimo Cabral, compôs inúmeras peças para as revistas musicais da praça Tiradentes e, depois, para os cassinos da Urca e de Icaraí.
Também foi um dos pioneiros do jingle radiofônico no país. No rádio, foi produtor do programa "Trem da Alegria", da rádio Mayrink Veiga. Com Haroldo Barbosa, outro carioca típico, criou o personagem Barnabé, um funcionário público permanentemente duro, que virou marcha gravada por Emilinha.
Historiadores localizaram mais de 300 composições suas. Além de "Volta pra Casa, Emília", foi autor do clássico "Helena, Helena" (com Constantino Silva, o Secundino), o "Recruta Biruta" (com Nássara e Alberto Ribeiro), lançado pelos Garotos da Lua, conjunto vocal excepcional, relembrado por Ruy Castro em seu livro sobre a bossa nova.
Pessoas que o conheceram descrevem um homem atormentado, bem ao contrário de suas músicas mais conhecidas. Nesses casos, sempre surge a hipótese de que a amargura tenha sido consequência da falta de reconhecimento ou de memória nacional. Fosse regra, entre os compositores do chamado período de ouro, o índice de mortes por tristeza seria maior. A questão é que ao se matar, com 74 anos, serenou o homem que embalou tantas gerações de brasileiros com suas músicas.

Licença
Nos próximos 45 dias estarei de licença, para desenvolver trabalhos específicos. Mas voltarei com colunas esporádicas, nesse período, se surgir algum tema relevante ou exclusivo. Como a licença, solicitada há uma semana, foi concedida um dia após a polêmica com o senador Roberto Requião, alguns leitores escreveram indagando se havia alguma relação com o fato. Nenhuma, é evidente. O senador Requião é um sujeito com tanta credibilidade quanto uma nota de três reais. Ele só ganhou espaço na Folha devido ao rigor com que o jornal trata da questão da transparência.


E-mail: lnassif@uol.com.br


FIAT - O presidente da Fiat do Brasil, Roberto Vedovato, disse que a união da Fiat com a General Motors "não significa uma diminuição do parque de fornecedores". Segundo ele, os fornecedores também sairão fortalecidos com a soma de forças entre as duas montadoras.




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