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São Paulo, quarta-feira, 19 de março de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Extingam o IGP

PAULO RABELLO DE CASTRO

Desde 1947 o IGP (Índice Geral de Preços), da Fundação Getúlio Vargas, vem sendo o grande e mais confiável termômetro da inflação brasileira. O IGP é uma história de sucesso, publicado mensalmente na revista "Conjuntura Econômica". Neste mais de meio século de publicação o IGP trabalhou muito; registrou inflações baixas, altas e estratosféricas. Precisou vencer crises de desconfiança sobre sua utilidade; evitou tentativas de manipulação; venceu, firmando-se perante o público usuário e na competição com outros índices.
Agora, o IGP pode se aposentar, com as glórias e sucessos de sua época. Serviu ao país, como poucas instituições o puderam ou alcançaram; porém agora é hora de ir para a prateleira das documentações históricas.
Por que aposentar um herói? Tudo passa nesta vida, até mesmo a utilidade de índices de grande valia. Quando foi criado o Índice Geral de Preços, seu padrinho -o grande Eugênio Gudin- afirmou no primeiro boletim de "Conjuntura Econômica" que sua finalidade era "essencialmente prática". Destinava-se a deflacionar o Índice Geral de Negócios publicado por aquela revista. Sua estrutura, simples, mas não óbvia, era formada por 60% de influência dos preços por atacado (IPA), 30% pelo índice ao consumidor (IPC) e 10% pela variação dos custos da construção civil (INCC), estes dois últimos medidos, inicialmente, só na cidade do Rio de Janeiro.
Tal composição nunca mudou. Era preferível que permanecesse assim, pois nenhuma outra estrutura de pesos entre atacado, varejo e construção civil poderia manter a qualidade de encadear o IGP ao longo das décadas de observação passada, ligando-o ao futuro. A estrutura de pesos ficou constante, até o presente.
Ocorre, porém, que os mecanismos de captura dos choques autônomos (do tipo aumento de preço de petróleo, variações no câmbio, crises de safra etc.) se intensificaram muito após a passagem para o sistema de câmbio flutuante, em 1999. Antes da liberação cambial, e nos anos de forte intervenção direta em preços via CIP (Conselho Interministerial de Preços) e controles de tarifas públicas da última metade do século 20, o governo exercia manobras de acomodação do impacto desses choques de fora ou sobre o abastecimento interno. Com a liberação dos preços e do câmbio, resultou uma economia na qual os preços no atacado são capazes de se descolar fortemente dos do varejo, por largos períodos, como vem se verificando desde 1999.
Contudo os contratos pactuados desde então, seja entre particulares ou entre estes e o governo -caso das concessionárias de energia e outros-, ou entre governo e governo -na federalização de dívidas estaduais-, têm todos estabelecido o IGP como referência.
Tal relação tem se tornado perversa para o lado devedor, à medida que o IGP carrega 60% de influência do atacado, fortemente pressionado pelo câmbio, e depois, transmite -especialmente por tarifas públicas- essa influência ao varejo, que realimenta o mesmo IGP para cima, em geral quando o IPA já está tendo variações cadentes. Não é necessário muito esforço técnico -basta o uso de atenção e intuição- para perceber que a preferência generalizada pelo IGP -um índice "composto"- torna a indexação mais rígida na economia como um todo, favorecendo credores, exageradamente, em detrimento de devedores e sacrificando o já sofrido povo assalariado à medida que, ao governo, parece só restar um remédio (aliás, equivocado) para combater "a inflação do IGP": aumentar juros até o limite da destruição do crescimento e da eliminação de novos postos de trabalho.
Por isso o IGP, na era do câmbio livre, dos preços liberados e da incerteza mundial -que deve perdurar-, já não é o herói do passado. Deve se aposentar com glórias, para não cair na "compulsória", como vilão involuntário.
A pergunta que fica é: como extinguir o IGP sem dano ou insegurança jurídica? Por sorte, os contratos trazem todos uma cláusula do índice sucedâneo, na hipótese de o então adotado não ser mais publicado. Portanto não há insegurança jurídica para as partes, que deverão pactuar um índice alternativo ao IGP. Para uns, o índice chamado de "núcleo inflacionário" será mais compatível com o contrato (por exemplo, as renegociações da dívida estadual). Em outros casos mais frequentes, a migração natural seria um índice puro de preços ao consumidor. Para outros, algum índice específico (há vários na FGV) de variação de custo no atacado. Enfim, para outros ainda, o próprio câmbio.
Só a FGV pode resolver essa parada. A ela cabe aposentar o notável IGP, deixando de publicá-lo.


Paulo Rabello de Castro, 54, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

E-mail -
paulo@rcconsultores.com.br


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