São Paulo, Segunda-feira, 19 de Julho de 1999
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OPINIÃO ECONÔMICA
Lata d'água na cabeça

JOÃO SAYAD

Resolver problemas é mais fácil do que formulá-los.
O problema econômico é conseguir o máximo do que a gente gosta com o mínimo do que a gente não gosta; o máximo de receita com o mínimo de custo.
Difícil é definir o que a gente gosta e não gosta, o que é receita e custo.
Há 20 anos que o desemprego é alto no mundo inteiro enquanto a produtividade da mão-de-obra tem crescido.
Em economia, trabalho é considerado desagradável, é custo necessário para produzir as coisas de que gostamos. Aumentar a produtividade do trabalho é aumentar o quociente de coisas boas (produtos) por coisas ruins (trabalho).
Jogador de futebol trabalha? Podemos aumentar a "produtividade" da partida de futebol economizando dois goleiros?
Jardineiro que planta canteiros de amores-perfeitos trabalha? E boiadeiro que senta no cavalo o dia inteiro e fica passeando como nos anúncios do Marlboro, trabalha?
Jornalistas, políticos e professores trabalham? Fazem o que não gostam só para receber dinheiro em troca?
Muitos amigos adoram cozinhar. Cozinheiro trabalha?
O músico encarregado da percussão, lá no fundo da orquestra, que fica olhando atentamente o maestro para dar uma ou duas tamboriladas na hora certa, trabalha?
Trabalhar é transformar a natureza em algo com mais valor ou utilidade. Árvore em mesa, boi em churrasco, semente em planta, planta em comida, pedra em estátua.
Transformar a natureza -fazer arte, praticar esporte- é produtivo, mas não é desagradável, não é custo. Muitos pagam para fazer.
Talvez seja cansativo ou tenso, se o restaurante estiver cheio, e o cozinheiro não puder confundir o pedido de bife bem passado com o de malpassado. Mas o velejador na regata, o pescador de alto-mar, o jogador de futebol e o corretor da Bolsa procuram tensão. Não existem muitos prazeres sem tensão.
Executivos e burocratas controlam, coordenam e informam. Não transformam a natureza, apenas interagem entre si e outros trabalhadores. Gastam tempo escrevendo, telefonando, discutindo. Não trabalham como um time, trabalham com os rivais. Precisam recolher informações porque todos escondem informações. Controlam porque não confiam. Não confiam porque rivalizam. Executivo trabalha? Auditores , contadores, fiscais e consultores, trabalham?
Quando não competem no escritório, matam-se na quadra de tênis. Pagam para trabalhar ou rivalizar, como os que gostam de jardinagem ou de cozinhar pagam para praticar seus "hobbies".
O trabalho dos executivos que concorrem entre si não é produtivo. Se eu puxo a corda para cá, e você, para lá, ficamos estressados, não dormimos direito, infartamos, e o trabalho resultante é nulo. Não produz coisa alguma.
O trabalho realmente duro, desagradável e produtivo, é cada vez menos frequente -mineiros em minas de carvão que podem explodir como em "Germinal", lixeiros e catadores de lixo, limpadores de chaminé dos romances do Dickens, Maria com a lata d'água na cabeça na música brasileira, lavar panelas depois do jantar, limpar banheiros e algumas poucas outras coisas.
É trabalho para imigrante recém-chegado ou mal informado. É mal pago e não compensa substituir.
Diminuir a concorrência, a rivalidade e desempregar executivos rivais economiza custos, aumenta a produtividade.
Mas diminui o produto nacional -o desempregado não pode mais competir, como um jogador de futebol que não possa jogar ou o gourmet que não possa cozinhar.
Substituir jardineiros, cowboys e cozinheiros por robôs, laptops e fornos eletrônicos pode aumentar os lucros do dono do negócio, aumentar a produtividade da empresa, mas diminui o bem-estar de quem gosta de fazer essas coisas.
Desempregar dá lucro, do ponto de vista privado. Do ponto de vista nacional, o emprego desnecessário não custa nada. O governo pode reduzir despesas se demitir funcionários públicos. Será lucro da mesma natureza dos ganhos da especulação da Bolsa de Valores -um ganha, outro perde. É ganho privado e não nacional ou social.
Será que o desemprego é problema porque diminui a produção? Ou porque exclui da festa do trabalho?
É problema de "economia de recursos" ou de discriminação -não quero dar lugar para os negros, as mulheres, nem as melhores posições para os estrangeiros nas empresas do Primeiro Mundo, ou para os nativos nas subsidiárias do Terceiro Mundo?
Sísifo foi condenado pelos deuses a carregar para o alto da montanha uma imensa pedra que sempre voltava a deslizar para baixo. Sísifo era imortal e a tarefa, sem fim. Foi castigo ou foi a compaixão dos deuses que impediu que Sísifo ficasse eternamente desempregado?


João Sayad, 51, economista, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e ex-ministro do Planejamento (governo José Sarney), escreve às segundas-feiras nesta coluna.
Email: jsayad@ibm.net


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