São Paulo, quinta-feira, 19 de setembro de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

FMI e Banco Central

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Descrito como "minimalista" pelo governo, quando do seu anúncio em agosto, o acordo com o FMI é, na verdade, bastante abrangente e contém diversos aspectos problemáticos, ou potencialmente problemáticos, como comecei a mostrar no artigo da quinta-feira passada.
Um risco é que o acordo acabe servindo como instrumento para extorquir do próximo governo a independência do Banco Central. Como se sabe, a ortodoxia econômica, que tem no FMI um dos seus principais instrumentos práticos, costuma apresentar acentuada preferência por bancos centrais independentes ou autônomos, nos quais as diretorias têm mandatos fixos e segurança no emprego. Essa preferência se verá substancialmente reforçada na hipótese, hoje bastante provável, de que os eleitores brasileiros escolham um governo não tão afinado com o sistema financeiro internacional quanto o atual. Nesse caso, a autonomia do banco central "protegeria" a política econômica de tendências, digamos, pouco construtivas do governo eleito.
Os documentos do novo acordo com o FMI trazem alguns indícios de que esse objetivo está de fato presente. O acordo não diverge substancialmente do figurino tradicional, mas apresenta uma inovação: a introdução de um "critério de desempenho estrutural", que prevê a edição de uma medida de caráter legislativo até o fim de deste ano: a conversão da contribuição social para o PIS (Programa de Integração Social) em um imposto sobre o valor agregado ("Brazil - Technical Memorandum of Understanding", 29 de agosto de 2002, www.imf.org).
No jargão do FMI, "critérios de desempenho" são objetivos de política econômica, especificados no memorando técnico de entendimento, cujo cumprimento constitui precondição para o desembolso de recursos. Normalmente, os critérios de desempenho dizem respeito a metas macroeconômicas quantitativas (resultados fiscais, dívida pública, dívida externa e reservas internacionais, por exemplo), ficando a critério do país definir os meios (legislativos, administrativos etc.) para alcançá-las. Esse foi o padrão em todas as cartas de intenção enviadas pelo Brasil ao FMI desde 1998. Agora, incluiu-se um critério de desempenho de tipo diferente, de caráter legislativo.
A medida em questão é defensável: há muito tempo que se pretende que tributos cumulativos, como a Cofins e o PIS, sejam transformados em tributos sobre o valor adicionado. O problema é o precedente que se cria. Esse tipo de critério de desempenho, dito "estrutural", abre espaço para um aumento da ingerência do FMI ao longo das diversas revisões do acordo recém-aprovado. Há cinco revisões previstas no acordo até novembro de 2003. É perfeitamente possível que, nessas revisões, apareçam novas metas, exigências e critérios de desempenho.
Pela via dos critérios "estruturais" podem entrar a questão do Banco Central e outras propostas de legislação que têm sido objeto de muita polêmica na sociedade e no Congresso brasileiros. Registre-se que, no memorando de políticas econômicas, documento que enuncia metas e compromissos de tipo diferente, não necessariamente vinculados a desembolsos, o governo brasileiro se comprometeu até mesmo a buscar uma emenda constitucional: a modificação do artigo 192 da Constituição. "Isso permitiria", explica o memorando, "que o próximo governo submetesse ao Congresso uma nova lei garantindo autonomia operacional para o Banco Central do Brasil". Na área fiscal, o governo se compromete a buscar aprovação de legislação que permita cobrar a surrealista contribuição previdenciária de funcionários públicos aposentados, entre outras medidas ("Brazil - Memorandum of Economic Policies", 29 de agosto de 2002, www.imf.org).
Se o próximo governo facilitar, esses compromissos poderão migrar para o memorando técnico em futuras revisões do acordo, transformando-se em critérios de desempenho "estruturais".
A proposta de independência do Banco Central pode, em princípio, parecer atraente. Ela costuma ser justificada como um meio de "despolitizar" a autoridade monetária, assegurando a autonomia de dirigentes "técnicos", cujo horizonte de decisão seria mais longo do que o dos políticos eleitos.
Na prática, essa proposta pode resultar em algo bem diferente: a transformação do Banco Central em uma espécie de enclave do sistema financeiro internacional, basicamente fora do alcance do governo nacional. Dirigido por uma tecnocracia apátrida e convertido em posto avançado do eixo Wall Street-Washington, o Banco Central obedeceria, em primeira instância, a comandos externos, e não aos dirigentes políticos eleitos pelos brasileiros.
Em alguma medida, é o que já vem acontecendo no período Fernando Henrique Cardoso. O que se tentaria agora, via FMI, seria a consolidação, em lei, do padrão que predominou nestes últimos oito anos.
Se esse cenário prevalecer, o eleitor brasileiro, que se prepara, neste momento, para participar, feliz e contente, da "festa da democracia", descobrirá, depois de algum tempo, que o modelo econômico está, na prática, solidamente blindado contra a sua vontade de mudança.


Paulo Nogueira Batista Jr., 47, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-SP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela é..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).
E-mail - pnbjr@attglobal.net


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