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São Paulo, quinta-feira, 20 de fevereiro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Os EUA e a Alca

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

A alca (Área de Livre Comércio das Américas) tem sido um tema recorrente nesta coluna. Há boas razões para essa insistência. A eventual formação da Alca representaria um formidável esvaziamento da política econômica nacional.
Como escreveu o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, hoje vice-ministro das Relações Exteriores, a Alca significaria a incorporação do Brasil, de forma subordinada, a um território econômico único dominado pelos EUA. A idéia de um projeto nacional de desenvolvimento teria de ser arquivada. Ou relegada à condição de simples instrumento retórico, próprio para iludir incautos em época de campanha eleitoral.
O último lance dessa negociação foi a apresentação pelos EUA, na semana passada, de uma proposta limitada e discriminatória no que diz respeito à maioria dos temas de interesse do Brasil. As ofertas de diminuição de tarifas foram diferenciadas: as melhores foram feitas para os países do Caribe e da América Central; as piores, para o Mercosul.
Nas questões prioritárias para os EUA, a proposta é abrangente e ambiciosa. No que diz respeito a serviços, por exemplo, os EUA oferecem, e buscarão em contrapartida, amplo acesso a mercados em setores como serviços financeiros, telecomunicações, informática, serviços audiovisuais, construção e engenharia, turismo, publicidade, serviços de entrega rápida, serviços profissionais (arquitetos, engenheiros, contadores etc.), serviços de distribuição (atacado, varejo e "franchising"), certos serviços de transporte, serviços de energia e serviços relacionados à atividade industrial.
A reação no Brasil foi bastante negativa. Ministros de Estado, editoriais dos principais jornais, empresários e especialistas se uniram na crítica à proposta apresentada por Washington.
Muito bem. Não se pode dizer, contudo, que a proposta tenha sido uma surpresa. Ela dá sequência à orientação que vem sendo seguida pelo Executivo e pelo Congresso dos EUA, especialmente desde 2001-2002.
Como brasileiro gosta de se iludir, vou repetir o que escrevi várias vezes nesta coluna: os EUA deixaram claro, em diversas ocasiões, que as questões prioritárias para o Brasil serão ignoradas ou relegadas a segundo plano na negociação da Alca.
Trato desse problema em pesquisa que estou concluindo sobre a questão da Alca, no âmbito do IEA (Instituto de Estudos Avançados) da USP. Nela analiso, entre outros aspectos, o mandato negociador aprovado pelo Congresso dos EUA em agosto do ano passado, o "Bipartisan Trade Promotion Authority Act".
Quem deseja ter uma idéia do que a Alca poderá ser, na prática, deve consultar esse documento. O mandato negociador especifica, por exemplo, que os EUA devem preservar as suas leis comerciais, largamente utilizadas como instrumento de proteção contra a concorrência de produtores do Brasil e de outros países. "Um dos principais objetivos de negociação (...)", diz o texto da lei, é "preservar a capacidade dos Estados Unidos de aplicar rigorosamente as suas leis comerciais, inclusive as leis antidumping, de direitos compensatórios e de salvaguardas, e evitar acordos que diminuam a efetividade de restrições nacionais e internacionais ao comércio injusto, especialmente dumping e subsídios (...)".
O mandato negociador reafirmou também, e com grande abundância de detalhes, os poderosos esquemas de defesa da produção agrícola dos EUA. Estabeleceu, por exemplo, que sejam garantidos períodos adequados de ajustamento para os produtos "sensíveis a importações", mediante complicadas consultas com o Congresso antes de iniciar negociações de redução de tarifas. Determinou a preservação dos programas de apoio à agricultura familiar e às comunidades rurais, em referência aos subsídios à produção da lei agrícola de 2002. Indicou, também, que devem ser mantidos os programas de assistência alimentar e de crédito à exportação de produtos agrícolas, que funcionam como subsídios à exportação.
A implementação do mandato negociador será monitorada pelo Congresso, em base permanente, por uma série de comissões parlamentares. O grau de detalhamento dos procedimentos de consulta e monitoramento é de tal ordem que o Executivo dificilmente poderá contornar as determinações do Congresso no decorrer das negociações.
Nos produtos considerados "sensíveis a importações" estão quase todos os de interesse prioritário do Brasil, como ressaltou o embaixador Rubens Ricupero em artigo publicado na edição mais recente da revista "Estudos Avançados" do IEA da USP. Segundo a embaixada do Brasil em Washington, os "sensíveis" agrícolas correspondem a nada menos que 521 linhas tarifárias, equivalem a aproximadamente 20% das importações agrícolas dos EUA e incluem todos os produtos de interesse imediato do Brasil, como açúcar, etanol, carne, cítricos e tabaco.
Já que o governo brasileiro ainda quer continuar nessa negociação eminentemente desequilibrada e problemática, o mínimo que se deve esperar é que o Congresso do Brasil saia da sua tradicional passividade em matéria de negociações internacionais e trabalhe no sentido de também estabelecer um mandato negociador para o Executivo.
Como observou o embaixador Alvaro Alencar, em artigo publicado na "Gazeta Mercantil", um mandato negociador daria segurança aos negociadores brasileiros, protegendo-os de constrangimentos e de pressões indevidas e possivelmente danosas ao interesse nacional.


Paulo Nogueira Batista Jr., 47, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia Como Ela É ..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).

E-mail - pnbjr@attglobal.net


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