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São Paulo, domingo, 20 de abril de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Paz na Terra

RUBENS RICUPERO

Haverá guerra e rumores de guerra. Era só, em resumo, o que se podia ler nos jornais de 11 deste mês: ocupação de Bagdá, caos e desordem, saques sistemáticos, pilhagem do museu, da biblioteca e dos hospitais, crianças e mulheres massacradas a bala, a bombas, mutiladas física e psicologicamente, ameaças à Síria. Em lugar nenhum encontrei a mais breve alusão ao que havia acontecido naquela data 40 anos antes: a assinatura da encíclica "Pacem in Terris", que tanto impacto teve no mundo e até no Brasil, cuja própria guerra interna começaria menos de um ano depois.
Não que a encíclica tenha alterado de alguma maneira o desastroso curso dos acontecimentos na Terra. A década de 60 se inaugurara com duas crises gravíssimas, inspiradoras prováveis do documento papal: a dos mísseis em Cuba, que por um triz não detonou o Armagedon nuclear, e a da construção do Muro de Berlim, o mesmo que, ao ser demolido, em 1989, marcaria o fim do comunismo e da Guerra Fria. Tendo-se conseguido evitar o pior nessas ocasiões, a esperança de uma paz durável se realimentou com a liderança de Kruschev, errática, contraditória às vezes, mas menos ameaçadora do que a de Stálin. As duas superpotências líderes do mundo bipolar da época tiveram a prudência de evitar o confronto direto porque ele lhes teria acarretado a destruição mútua. Isso não impediu que elas continuassem a afrontar-se por procuração, em conflitos localizados, como o do Vietnã, no qual iriam afundar-se progressivamente os americanos naquela segunda metade dos anos 60.
Parecia, assim, um sonho falar de paz no momento em que o equilíbrio do terror unificava o consenso em torno da fórmula lapidar de Raymond Aron: "Paz impossível, guerra improvável". Enquanto esperava "com simplicidade e alegria", conforme escreveu, que a "irmã morte" o levasse dois meses depois, João 23 escolheu a paz como tema de sua derradeira mensagem. A paz dependia, para ele, de quatro condições, que se confundiam com as exigências básicas do espírito humano: a verdade, a justiça, o amor e a liberdade. A verdade implica a tomada de consciência honesta não só dos direitos de cada um mas de seus deveres em relação aos outros. A justiça é traduzir essa consciência no respeito concreto aos direitos alheios e no cumprimento pleno dos deveres para com o próximo. O amor vai mais longe: exige considerar as necessidades dos demais como se fossem as próprias e partilhar com eles o que se possui, a começar dos valores do espírito. A liberdade, enfim, pressupõe assumir com coragem a responsabilidade dos próprios atos na escolha dos meios para construir a paz.
O papa revelou, dias mais tarde, por que havia desejado dar à encíclica a data da Quinta-Feira Santa. Era o dia no qual Cristo, sabendo que ia morrer, disse estas palavras, em testamento, a seus discípulos: "Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz" (Jo, 14,27). Angelo Giuseppe Roncalli agonizava também no Vaticano quando Hannah Arendt ouviu da camareira do hotel perguntas curiosas: "Signora, este papa era um verdadeiro cristiano. Como foi possível que um verdadeiro cristiano pudesse chegar à cadeira de são Pedro? Ele não tinha primeiro que ser nomeado bispo e cardeal? Será que ninguém sabia quem ele era?". Na boca do povo italiano, "cristiano" se traduziria melhor como "evangélico" no sentido de Francisco de Assis e de outros "loucos de Deus", capazes da insensatez de levar a sério o Evangelho como um "programa de vida radical" (título do livro do saudoso frei Mateus Rocha OP). Com a sabedoria de milênios de história, os italianos têm poucas ilusões sobre os homens de poder -no governo ou na igreja. É por isso que dizem "Roma veduta, fede perduta", isto é, que o espetáculo da Cúria Romana costuma ser o escândalo destruidor da fé mais pura. Arendt comenta que a resposta às perguntas da camareira deveria ser negativa. A prova é que o alfaiate do Vaticano não tinha previsto a roupa papal no tamanho robusto do camponês Roncalli. Ninguém esperava que ele acabasse escolhido para desempatar o conclave e, mesmo isso, apenas como solução transitória e irrelevante.
Escrevo numa outra Quinta-Feira Santa e releio o discurso de adeus de Jesus. A frase que citei continua: "Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz. Não é à maneira do mundo que eu vos dou a paz". Há, portanto, dois tipos de paz: a do mundo e a do espírito. De fato, no Antigo Testamento, paz é muito mais do que ausência de guerra ou desordem. "Shalom" exprime a plenitude, um perfeito estado de bem-estar, saúde, felicidade. É o modo habitual de dizer "bom-dia" e "até logo" em Israel e nos países árabes, muçulmanos. Em português, salamaleque vem daí, do árabe as-salam-'alaik -"a paz esteja contigo". É significativo que hebreus e árabes, irmãos semitas inimigos, utilizem para saudar-se a mesma aspiração comum de paz. Será demais esperar que um dia, de tanto desejá-la uns aos outros dentro do próprio grupo, acabem também por encontrá-la em relação aos vizinhos?
A paz interior, que vem de Deus, não deve levar ao desinteresse, à indiferença ante a desordem e a guerra no mundo. Na relação das bem-aventuranças, uma proeminente é reservada aos que realizam obra de paz: eles serão chamados filhos de Deus. Existe, assim, um dever categórico de promover a paz, de não abandoná-la, salvo nas circunstâncias mais extremas. O que chocou justamente nesta guerra contra o Iraque foi a gratuidade, a desnecessidade de um remédio desproporcional à magnitude do problema que se supunha resolver. Consola de algum modo que as religiões se tivessem recusado a servir de instrumento para justificar o injustificável. Ortodoxos, protestantes, católicos, todos se uniram em indignação que se estendeu do arcebispo de Canterbury, na Igreja Anglicana, a todas as denominações protestantes nos EUA, inclusive a Igreja Metodista Unida, do presidente, com a única exceção dos batistas do sul. Na incansável denúncia dessa infortunada guerra, ninguém foi mais profético e veemente do que João Paulo 2º, que não hesitou em advertir os dirigentes de que eles terão um dia de prestar contas a Deus por uma guerra capaz de "pôr em perigo o destino da humanidade". Criticou-se muitas vezes Pio 12 por não ter sido suficientemente profético em denunciar de público o hediondo Holocausto dos nazistas contra os judeus. Ninguém sabe se isso teria evitado o pior. No caso atual, sabemos que a tomada de posição dos líderes religiosos teve pouco ou nenhum efeito na mídia e nos governos belicistas, que se comportaram como se repetissem a pergunta de Stálin: "Afinal, de quantas divisões dispõe o papa?".
Os apelos foram em vão, da mesma forma que ficaram sem eco as advertências de todos os profetas. Inclusive as desse bem-humorado e despretensioso João 23, que morria em Roma dizendo: "Qualquer dia é bom para nascer, qualquer dia é bom para morrer". No eterno ciclo de nascimento e morte, de morte e ressurreição, a Páscoa é essa passagem penosa, mas necessária. Ao evocá-la, neste dia, quero dirigir aos meus leitores as palavras com que Jesus ressuscitado foi reconhecido por seus amigos: "A paz esteja convosco".


Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).

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