São Paulo, sábado, 20 de julho de 2002

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ANÁLISE

Ganância infectou crédulos e permitiu as trapaças

DO "FINANCIAL TIMES"

Para um homem notório por sua ambiguidade deliberada, Alan Greenspan, o presidente do Federal Reserve (Fed, banco central dos Estados Unidos), tem um talento notável para encontrar frases reveladoras.
Em 1996, ele capturou toda uma era em duas palavras: "exuberância irracional". E nesta semana, saiu-se com outra: "ganância infecciosa".
A raiz da crise no setor de governança corporativa dos Estados Unidos e, em escala menor, em outros países, foi, nas palavras de Greenspan no discurso dirigido ao Congresso americano, "a rápida ampliação das capitalizações que aconteceram na parte final dos anos 90 nos mercados de ações". Isso não se devia ao fato de que as pessoas fossem mais gananciosas do que no passado, mas sim, nas palavras dele, "a um aumento desproporcional nas oportunidades de avareza".

Força irresistível
Entre o começo de 1995 e seu pico, menos de seis anos mais tarde, a capitalização dos mercados de ações dos Estados Unidos aumentou em mais de US$ 12 trilhões. A força irresistível de uma imensa oportunidade colidiu contra o objeto que era a vigilância do patrimônio dos acionistas. Apenas agora, com a queda nos mercados, os resultados desse choque vão sendo dolorosamente revelados.
Como também disse o chairman do Fed, "advogados, auditores internos e externos, os conselhos das empresas, os analistas de valores de Wall Street, as agências de classificação de crédito e os grandes detentores institucionais de ações fracassaram todos, por um motivo ou por outro, em detectar e denunciar aqueles que violaram o nível de confiança essencial ao bom funcionamento dos mercados".

Coisas impossíveis
É um julgamento severo mas correto. No entanto, Greenspan não avançou o suficiente. A ganância também criou investidores mais crédulos.
Ninguém é capaz de proteger as pessoas contra si mesmas. Se estamos preparados para acreditar em "até seis coisas impossíveis antes do café da manhã", obviamente um tolo e seu dinheiro não demorarão a se separar.
Mas sejamos justos. Talvez os apostadores crédulos tenham acreditado em apenas duas coisas impossíveis.
O que se provou suficiente para sustentar a disparada das avaliações dos valores das ações sem base em receitas subjacentes que as justificassem.
Os investidores decidiram encarar como corretas previsões de longo prazo insensatas sobre os lucros das empresas, e aceitaram que muitas companhias bem administradas seriam capazes de gerar uma ascensão suave e ilimitada de seus lucros trimestrais.
É verdade que a suposta duplicação dos lucros reais das empresas dos Estados Unidos entre 1993 e o começo de 2000 ajudou os investidores a confundir uma recuperação cíclica com uma nova tendência.
De forma semelhante, os executivos das empresas mesmos estavam felizes por prometer -e aparentemente executar- uma continuada elevação de seus lucros.
No entanto, bastaria pensar um pouco para que a sobriedade prevalecesse. Os investidores deveriam ter compreendido que a concorrência forçaria as empresas a distribuir quaisquer benefícios conferidos pelos ganhos de produtividade aos seus clientes e empregados.
Os investidores deveriam, igualmente, ter compreendido que era improvável que os lucros corporativos crescessem mais rápido que a economia em longo prazo. Deveriam, além disso, ter sabido que era inevitável que os lucros viessem a flutuar.
Pensem sobre tudo isso. Em longo prazo, a economia dos Estados Unidos pode crescer entre 3% e 4% ao ano em termos reais. No Reino Unido e na Europa continental, a tendência real de crescimento é de entre 2% e 3% anuais.
Portanto, o provável é que essas sejam as taxas de crescimento de longo prazo para os lucros. Pode haver desvios em relação à tendência em prazo curto e médio, mas não em prazo longo.

Crescimento de lucros
Presumam igualmente que a inflação fique entre os 2% e os 3% anuais nessas economias. Portanto, os lucros e receitas nominais teriam de subir entre 5% e 7% anuais nos Estados Unidos e entre os 4% e os 6% nominais na Europa para que a tendência se confirme. Algumas empresas indubitavelmente se sairão melhor que a média.
Mas é igualmente seguro que outras se saiam pior. Apenas os grupos excepcionalmente bem administrados ou bem posicionados conseguirão sustentar um crescimento nominal de receita da ordem de 10% ao ano, para não falarmos de taxas mais elevadas.
Um executivo-chefe que prometa esse tipo de desempenho é provavelmente um executivo-chefe disposto -ou predisposto a ser forçado- a agir de maneira irregular.
Se o exército de analistas, especialistas, assessores e executivos disser coisa diferente, os investidores deveriam lembrar-se de que interessa muito a essas pessoas vender-lhes fantasias. Se as pessoas podem enriquecer vendendo milagres, tentarão vender milagres. A manipulação imoral ou completamente ilegal é o resultado, inevitável e humano.
Dois anos atrás, os investidores estavam dispostos a acreditar em qualquer coisa; agora, não confiam mais em nada. Assim, o mercado hoje pune aquilo que recompensava. Não se trata de uma crise do capitalismo, mas de um mecanismo corretivo em funcionamento. Os mercados que hoje despencam e a descrença generalizada descendem diretamente da bolha e da crença anteriores. Os crédulos pagam.
Compreensivelmente, os investidores estão enfurecidos por terem sido enganados. Querem a punição dos trapaceiros. E isso deveria efetivamente acontecer. Mas foi a credulidade do público que tornou possível o reino dos trapaceiros e dos pilantras. Os executivos-chefes deram aos investidores o que estes desejavam. Se não o tivessem feito, teriam sido punidos.
Trata-se, infelizmente, de uma velha história, repetida em quase todas as gerações. Sem dúvida ela voltará a acontecer no futuro. A ganância era de fato infecciosa. E é agradável lançar a culpa aos outros. Mas poucos escaparam à doença.


Tradução de Paulo Migliacci


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