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São Paulo, domingo, 20 de julho de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

A chave da parábola

RUBENS RICUPERO

É raro no Evangelho que Jesus explique suas parábolas, pois, como as metáforas, elas deveriam ser auto-evidentes. A exceção maior é quando, a pedido dos apóstolos, ele "desconstrói", dando o sentido didático de cada elemento, a história do semeador, a que, na bela tradução oitocentista do padre Antonio Pereira de Figueiredo, se abre com frase em que todas as palavras começam com s: "Saiu o semeador a semear a sua semente".
Minha amiga Cecilia Soto, personalidade de exceção que representa o México no Brasil, enviou-me cópia de carta que dirigiu à Folha sobre reportagem do "Financial Times" a respeito do seu país, com comentários inteligentes acerca de meu artigo de domingo passado, no qual citava-se o jornal britânico. Minha intenção não era tanto examinar em profundidade os acontecimentos mexicanos, porque faltam-me para isso informações mais completas e precisas. O que fiz foi utilizar a recente história asteca como parábola das frustrações da América Latina.
Poderia ter recorrido ao exemplo do Chile, mas o caso mexicano ilustra melhor o foco central de minha argumentação: o desenvolvimento pleno e sustentado não se confunde com o êxito exportador, nem mesmo de manufaturados "nobres", nem com a obtenção do "investment grade" das agências de crédito e com a atração de investimentos, nem com a redução da carga tributária a níveis baixos inimagináveis para a maioria dos países. "Não se confunde" significa simplesmente que não devemos reduzir o desenvolvimento a uma espécie de consequência automática de tais resultados, não que eles não sejam verdadeiros e desejáveis.
Deixei claro que "todas essas conquistas... (eram) progressos reais e admiráveis, avanços (que) merecem respeito", expressões textuais empregadas. Acrescentei que o Brasil estava longe de emular tais conquistas, e aqui começo a esclarecer minhas intenções. Em nosso país e nos demais, ouvimos com frequência que temos de expandir com vigor as exportações, sobretudo de manufaturados, e estou entre os que vêm martelando há anos nessa tecla. A longo prazo, porém, o sucesso exportador não basta para manter crescimento alto e estável se depender em excesso de insumos importados, com baixa adição de valor local e se aumentar a concentração em um só mercado, tornando-nos reféns das vicissitudes da economia do parceiro principal. É verdade que mesmo a indústria de linha de montagem é útil como estágio para algo melhor, já que sempre gera empregos, renda, exportações. Não passa, contudo, de estágio precário por basear-se em fator -a mão-de-obra barata- abundante na China e em outras paragens asiáticas.
O êxito mexicano é espetacular tanto em triplicar as exportações em sete anos -e faço votos para que logo aumente e melhore o valor agregado- quanto na obtenção do "investment grade". Um e outro são apresentados no Brasil como a chave para o crescimento, embora pareça pouco provável que possamos reproduzir tais resultados num futuro próximo. Se fosse certo o que se diz desses fatores -e a eles teríamos de acrescentar a carga tributária correspondente a um terço apenas da brasileira-, deveríamos constatar um crescimento da economia mexicana incomparavelmente mais alto do que tem sido, e não só nos anos coincidentes com o boom americano. Aliás, em teoria, um acordo de livre comércio entre países de grande diferencial de desenvolvimento, como é o Nafta entre os EUA e o México, teria de produzir a gradual convergência da economia menos avançada com a de nível superior. Para tanto, a economia mexicana precisaria estar crescendo muito mais rápido que a americana -e o contrário é o que acontece.
Todavia não é só o México que não cresce a velocidade satisfatória: nenhuma economia latino-americana vem tendo desempenho à prova de crítica. O próprio Chile, até pouco uma aparente exceção, deve sua alta média nos anos 90 (6,7%) à primeira, não à segunda metade da década. Desde 1998, a economia chilena se desacelerou e só cresce a taxas entre 2% e 3% anuais. Ora, a fim de passar no teste do desenvolvimento, é indispensável atingir expansão elevada -entre 5,5% e 6,5%- não em três ou quatro anos, mas ao longo de três ou quatro décadas. Esse tem sido o desempenho de Coréia do Sul, Taiwan, Cingapura, Hong Kong, Malásia, imitados pela China já durante mais de 22 anos. Ademais, todos esses asiáticos reduziram substancialmente a pobreza absoluta e melhoraram a distribuição de renda. Enquanto não chegarmos perto dessas metas, seremos condenados a buscar na realidade frustrante da América Latina a parábola inspiradora de uma mudança de modelo econômico.


Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).

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