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São Paulo, domingo, 20 de julho de 2003

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Efeitos negativos da política cambial na Ásia

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

O tema do momento, entre os analistas das tendências da economia mundial, é a resistência dos países asiáticos diante das sugestões ou das súplicas para que valorizem suas moedas. As edições das revistas "The Economist" e "Business Week" que acabam de chegar às bancas trazem matérias alentadas, verdadeiros alertas, sobre os efeitos negativos das políticas cambiais em curso na Ásia na pretendida correção dos desequilíbrios do balanço de pagamentos entre os três blocos mais importantes da economia global.
Desde que iniciou seu movimento descendente, no começo de 2000, o dólar perdeu 25% de seu valor em relação ao euro, mas apenas 10% ou menos quando cotejado com as moedas asiáticas. Permaneceu estável, diga-se, em relação ao yuan, a moeda chinesa. Em 2002, o déficit dos Estados Unidos com a China chegou a US$ 103 bilhões. As economias da Ásia, em conjunto, foram responsáveis pela metade do déficit total americano, superior a US$ 400 bilhões.
Americanos e europeus estão incomodados com a teimosia dos asiáticos que não parecem dispostos a abandonar as políticas de subvalorização de suas moedas. E não é para menos: os dados da "The Economist" mostram que entre janeiro de 2002 e julho de 2003 a China acumulou mais US$ 60 bilhões de reservas em divisas, ultrapassando a cifra total de US$ 300 bilhões; o Japão aumentou suas reservas em US$ 36 bilhões, chegando ao total de US$ 500 bilhões; Taiwan engordou seu caixa em US$ 45 bilhões, atingindo o total de US$ 190 bilhões. A Coréia foi mais modesta: amealhou US$ 28 bilhões no período, atingindo o total de US$ 120 bilhões. A Índia não deixou por menos: no período em exame ampliou em US$ 73 bilhões seu estoque de reservas. Os asiáticos, todos sabem, sempre adotaram políticas mercantilistas de comércio exterior com o objetivo de sustentar estratégias de crescimento acelerado. A busca de saldos comerciais expressivos, com rápido crescimento das exportações, tem o propósito de permitir taxas de acumulação de capital muito elevadas, acompanhadas de altos índices de endividamento das empresas e de formação de poupança privada.
Essas políticas são desdenhosamente chamadas de neomercantilistas porquanto colocam ênfase na obtenção de um saldo comercial favorável e na acumulação de reservas. Na visão contemporânea, tais práticas afetam negativamente o comércio internacional, na medida em que perpetuam desequilíbrios nos balanços de pagamento de outros países e subtraem liquidez às transações globais.
Mas, num mundo em que são fortes as assimetrias de poder econômico e financeiro entre as nações, as práticas neomercantilistas não só têm propiciado o avanço tecnológico e produtivo das economias em desenvolvimento como permitem a adoção de políticas monetárias mais frouxas, isto é, taxas de juros mais baixas que favorecem a expansão do crédito doméstico, condição essencial para a expansão da economia capitalista moderna. A acumulação de reservas elevadas -capturadas através dos saldos comerciais e não de endividamento- garante o atendimento da demanda por liquidez em moeda forte e assegura a estabilidade da taxa de câmbio.
A "The Economist" diz que, depois da crise cambial e financeira de 1997, é compreensível que os países asiáticos desejem manter reservas elevadas para defender suas moedas de futuros ataques. Mas afirma, corretamente, que as operações de esterilização -mediante a colocação de títulos públicos para absorver o "excesso" de liquidez gerado pela formação de reservas- vão se tornando cada vez mais onerosas.
Muitos países da região, inclusive a China, estão estimulando empresas e famílias a adquirir ativos no exterior, como forma de evitar os efeitos monetários da expansão das reservas. Desde 2000, algumas economias asiáticas tornaram-se -no fluxo anual de capitais- credoras líquidas, ajudando a financiar os déficits do balanço em conta corrente dos Estados Unidos.
Para países descuidados resta um aviso amigo: a economia mundial, depois do forte deslocamento do capital produtivo nos anos 90, está com capacidade excedente em quase todos os setores. Uma fração importante da nova capacidade criada por esse ciclo de expansão está localizada na Ásia. Essa circunstância vai tornar ainda mais acirrada a luta pela conquista de mercados e mais difícil o ajustamento do déficit em conta corrente dos Estados Unidos.
A falta de memória é o caminho mais curto entre a última crise cambial e a próxima. A receita para esses desfechos trágicos é sabida: valorize o câmbio, financie o déficit em conta corrente com endividamento externo e permita a acumulação rápida da dívida interna de curto prazo, a outra face do aumento das reservas "emprestadas".


Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).

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