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São Paulo, domingo, 20 de julho de 2003

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LUÍS NASSIF

O nosso Jimmy Hendrix

Confesso que, ao ouvir a lenda, acabei me decepcionando. No final dos anos 60 a Rhodia contratou o publicitário Livio Rangan, que invadiu a fantasia dos brasileiros com festivais de moda, desfiles e tudo o mais. Para acompanhar os desfiles, Livio criou o Conjunto da Rhodia, integrado por alguns dos melhores músicos instrumentais do país. Desse conjunto se originou o Brazilian Octopus, integrado por dois gênios -o multiinstrumentista Hermeto Paschoal e o guitarrista Lanny Gordin- e por mais seis músicos excepcionais, entre os quais o guitarrista Olmir Stocker, mais o pianista Aparecido Bianchi, o flautista e saxofonista Carlos Alberto de Alcântara Pereira, o baterista Douglas de Oliveira e o baixista Nilson Carlos Ruiz da Matta.
Essa gravação virou peça de colecionador, e quem me a forneceu foi Fernando Rosa, do www.senhorf.com.br, site que tem tudo sobre a história do rock brasileiro. Mas o disco não está à altura do grupo.
Conheci o Octopus em sua formação de quarteto, no primeiro festival de Poços de Caldas, em 1969. Na época, já tinha participado de alguns festivais universitários da TV Tupi, embora ainda estivesse no secundário. Aproveitei os conhecimentos para convidar um grande número de artistas. Poços recebeu inscrições de Jorge Ben, Renato Teixeira, Eduardo Gudin, Adilson Godoy, entre outros. E uma composição de Olmir, de apelido Alemão, e de Vitor Martins, que, anos depois, se consagraria como o grande letrista de Ivan Lins.
A música foi defendida por Maricene Costa, que fazia sucesso na noite paulistana. Para acompanhá-la, veio metade do conjunto, Alemão, Hermeto, Lanny e provavelmente o baterista Douglas. Nem vou contar o que os jurados de Poços fizeram para não me irritar de novo. Mas, pelo menos antes do resultado das eliminatórias, aquela noite foi inesquecível.
Minha música com melhores condições era "Congresso Internacional do Medo", em parceria com meu amigo e colega João Cleber Juriti. A música terminava com um dixieland animadíssimo.
Doze músicas se apresentaram, e ficamos aguardando o resultado nos camarins do Teatro da Urca. Eu e João quase tivermos um orgasmo quando Alemão veio elogiar a música e sugerir uns condimentos a mais na parte final.
Enquanto os jurados discutiam entre si, tivemos nosso momento inesquecível, ouvindo Lanny e Hermeto tocando chorinho. De Hermeto se poderia esperar essa flexibilidade. Mas Lanny era um guitarrista típico, o maior do seu tempo, o maior guitarrista brasileiro da história, segundo os estudiosos da matéria, o homem que ensinou os Mutantes, mas não um homem de choro. João olhou para mim, eu para João, e nem precisava de palavras para saber o que o outro estava pensando: estávamos testemunhando um momento histórico.
A música do conjunto foi desclassificada, a nossa passou raspando para a final. Aí veio um júri de primeira, com Júlio Medaglia, Fernando Faro, Damiano Cozella, que deu o primeiro lugar a "Congresso". Mas ficou a decepção no grupo. Nós queríamos ganhar ou perder do povo da Rhodia.
No ano seguinte me mudei para São Paulo e iniciei carreira de jornalista. A estrela de Lanny subia cada vez mais. Cheguei a vê-los -ele e Hermeto- tocar na boate do seu pai, o Stardust, famosa na época.
Depois, o guitarrista desapareceu nas brumas de seus demônios interiores. Abusou, foi internado, saiu anos e anos depois, como um personagem que, congelado no tempo, reaparecesse em outro tempo, que não o seu. Fez parte da geração de Jimmy Hendrix e outros que se destruíram, como que consumidos pela voracidade do som que produziam.
Quando consegue, ainda faz cintilar a luz do gênio. Mas é muito difícil. Fernando me contou que, dia desses, um fã contratou-o para dar aulas de guitarra e gravou seus estudos e improvisos. Provavelmente serão esses cacos de inspiração que, colhidos aqui e ali, permitirão registrar, no futuro, os últimos sons do gênio.

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