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São Paulo, quarta-feira, 20 de agosto de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Pandemônio

PAULO RABELLO DE CASTRO

Faz mais de 20 anos que começamos a desmanchar como um sorvete submetido ao calor do meio-dia. Depois de uma taxa de crescimento olímpica no período precedente a 1980 -ganhamos uma "medalha de ouro" de expansão econômica entre 1900 e 1973, com o recorde de 4,9% de avanço anual do PIB brasileiro (a produção total de bens e serviços), e uma "medalha de bronze", com 4,5% ao ano, na contagem de todo o século 20 (1900 a 2000)-, a partir da virada dos anos 70 o nosso desempenho atlético na economia foi ficando muito para trás em relação ao exibido por dezenas de outros países.
Nem mesmo o benefício de um honroso 5º ou 6º lugar na competição da maratona do crescimento foi conseguido nas duas décadas que vão de 1980 a 2002. Nesse período, segundo o Iedi (Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial), que acaba de rever esses dados numa pesquisa de grande valor analítico e comparativa para a compreensão das razões da sofrível posição do Brasil (www.iedi.org.br), a taxa de crescimento do nosso país ficou em 2,4% ao ano entre 1982 e 2002, média incapaz de ao menos chegar perto das extraordinárias expansões na faixa de 7% a 10% de mais de uma dezena de campeões do crescimento, a começar pela China, com expansão do PIB de 9,7% ao ano!
Numa faixa mais moderada aparece, por exemplo, a Índia, com uma expansão de 5,6% ao ano (entre 1981 e 2000, segundo a pesquisa do Iedi), belo desempenho para um país que precisa inverter o seu quadro dramático de pobreza generalizada.
O Brasil, nesse contexto mundial de desempenhos, não foi assim tão mal quanto denotam os números do PIB. Logo de saída, é preciso lembrar que, na competição segmentada, houve avanços significativos do Brasil. Em particular no agronegócio, o país sempre traz medalhas (no caso, traz dólares de exportação) para casa. Em 1978/1982, a produção brasileira anual de grãos colhia cerca de 48 milhões de toneladas. Em 1998/2002 colheu uma média de 92 milhões de toneladas, um avanço medido por 4,3% ao ano no período.
Provavelmente nenhum outro país, desenvolvido ou emergente, terá alcançado essa marca do agronegócio nacional. E, se formos olhar alguns outros campos importantes, como extração mineral e petrolífera, educação e, quem sabe, serviços de saúde (por incrível que possa parecer!), aí também o desempenho do Brasil será destaque na certa.
Onde, então, é que nosso time empaca, deixando a competição passar?
Certamente, a explicação do mau desempenho não está nos atrasos setoriais, seja da agricultura ou de ramos da indústria, como antes se pensava, nem mesmo pelo baixo coeficiente de educação formal do trabalhador brasileiro, apesar de ser essa uma restrição.
Lembrando a reação daquele impaciente assessor do então candidato à Presidência dos EUA Bill Clinton, ao relembrar-lhe "Its the economy, stupid!", não custava que alguém também nos gritasse: "É a macroeconomia, gente!".
Ora, o que é, afinal, a macroeconomia? O estudo do Iedi nos traz importantes pistas. O Brasil tem sido, nos últimos 20 anos, um país de taxas de juros (reais) consistentemente altas e de baixa competitividade cambial. Traduzindo: (1) alto custo financeiro, (2) baixa irrigação de crédito e (3) forte vulnerabilidade nas contas externas. Como o próprio governo é o primeiro a pagar a conta do alto custo financeiro e da vulnerabilidade externa, não sobram recursos para tocar as despesas de capital (investimentos), já que boa parte da carga fiscal é consumida hoje nos encargos de juros da dívida pública, além dos explosivos gastos primários.
Até 1994, o sorvete da economia ia desmanchando na mão ao sol da inflação escaldante, mas todo mundo podia se lambuzar lambendo. Agora, guardaram o sorvete na geladeira do Banco Central. Assim, o sorvete não derrete com a inflação, mas, em compensação, não se toma mais sorvete... Isso tampouco é solução!
Reconhecer que a macroeconomia do Brasil está mal (não os setores produtivos, muito menos o povo, que corre atrás do prejuízo!) foi a tarefa bem cumprida pelo correto diagnóstico do Iedi. Detectar câmbio e juros como sintomas importantes do nosso baixo desempenho atlético, por assim dizer, já é uma tremenda contribuição.
Também é bom recordar que a consciência do nosso mau período é recente. Ainda há muita gente que acredita que vamos obter muito crescimento com macroeconomia madrasta. Não vamos. Outros ainda acham que basta repetir a dose dos remédios vendidos na farmácia da comunidade financeira para ficar curado da apatia que nos consome. Ilusão maior ainda.
Outros, enfim, acham que o diagnóstico correto já existe há muito tempo, mas o que falta é a porta para a cura da doença. Tampouco isso é verdade. Nesses 20 anos, assisti ao desfile das mais profundas bobagens ditas por macroeconomistas, políticos, curiosos em geral, e até, com certeza, por mim mesmo.
Isso nada ajudou ao diagnóstico correto da anemia do crescimento. Quem não se lembra da defesa fervorosa do congelamento de preços e salários como remédio aplaudido pelos doutos? Ou do repúdio das dívidas externa e interna?
O Brasil pode e vai sair desse marasmo. Sem voluntarismo. Com melhor compreensão da macroeconomia doente, é possível chegar às respostas que queremos.
Mas há uma condição, ou, mais precisamente, há duas: primeiro é querer. Depois, saber querer. Vontade de colocar o crescimento na prioridade, na obsessão de cada dia, é o que faltou antes e que parece ainda nos faltar hoje. Em seguida, saber querer, não significa repetir apenas que o Banco Central será prudente e conservador (isso deve estar no DNA dele) ou que a Fazenda vai segurar o caixa (isso deve estar no código genético dela).
Falta o resto, bem maior do que toda a ladainha do neoconservadorismo brasileiro. Falta desobstruir os caminhos bloqueados do investimento público e das inversões privadas e recuperar aquele gosto por fazer e fazer acontecer que um dia nos empurrou para o pódio das nações e que ainda poderá ressuscitar em nosso "ser coletivo" o espírito dos vencedores.


Paulo Rabello de Castro, 54, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

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rabellodecastro@uol.com.br


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