São Paulo, quinta, 20 de agosto de 1998

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OPINIÃO ECONÔMICA

Caipirosca

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Afinal, o que aconteceu com a Rússia? Aqui no Brasil, alguns economistas e jornalistas, dispostos a desempenhar um papel tranquilizador, apressaram-se a declarar que as medidas anunciadas pelo governo Ieltsin na segunda-feira passada eram "previsíveis". Mas a verdade é que reina uma certa perplexidade, e não só no Brasil.
Em meados de 1997, a Rússia estava sendo celebrada como um dos mais promissores "mercados emergentes". Os mais otimistas proclamavam que o mercado russo era uma das maiores oportunidades de investimento do século 21. O capital estrangeiro, boa parte do qual volátil ou de curto prazo, entrava em massa sob a forma de empréstimos ou de investimentos em ações, títulos e outros ativos.
Como é possível que a situação tenha mudado tanto em tão pouco tempo? Como é que um país passa da condição de "mercado emergente do futuro" à moratória unilateral no prazo exíguo, quase ridículo, de um ano?
Hoje, como se sabe, a Rússia é um dos países mais problemáticos do planeta. Uma Indonésia com arsenal atômico, comentou o jornal britânico "Financial Times".
E vejam vocês como são as coisas. Um ano parece pouco, mas é muito tempo em época de crise financeira. Há apenas um mês, um mísero mês, o FMI, o Banco Mundial e o Japão anunciaram um grande pacote financeiro para a Rússia, recebido com alívio pelos mercados internacionais.
É possível entender o que se passou? Há aspectos da crise russa que são bastante conhecidos. O ponto de inflexão foi a confusão no Leste da Ásia em fins do ano passado. Fora daquela região, os países mais afetados na ocasião foram a Rússia e o Brasil, atingidos por uma forte diminuição do ingresso de capitais externos.
No caso da Rússia, aconteceu um choque externo adicional, não experimentado pelo Brasil: uma acentuada deterioração dos termos de troca, resultante da queda dos preços do petróleo e de outras "commodities" que respondem por parcela substancial das receitas de divisas e de impostos.
Sabe-se também que, a despeito do entusiasmo dos mercados financeiros internacionais, o governo, o quadro político e a política econômica na Rússia nunca foram brilhantes nos anos recentes (para dizer o mínimo). Mesmo antes da crise de fins do ano passado, a economia russa estava em recessão ou estagnada. O déficit público se manteve muito alto em todos os anos recentes e as dívidas interna e externa de curto prazo aumentaram perigosamente.
O grande resultado macroeconômico e principal trunfo do governo Ieltsin junto à sofrida população do país é (ou era) o controle da inflação, que caiu para apenas 4% nos 12 meses até julho de 1998. O sucesso no combate à inflação resultava em parte de um esquema de ancoragem cambial caracterizado por uma banda relativamente estreita que vinha sendo ajustada de forma a garantir depreciação gradual do rublo. Foi o regime cambial que vigorou até segunda-feira.
O outro trunfo é de natureza geopolítica: a Rússia é grande demais (e armada demais) para ser deixada à própria sorte pelo Grupo dos 7 e pelas entidades multilaterais de crédito.
Essa foi a consideração que presidiu à montagem do pacote financeiro de julho. Mas os casos da Rússia e dos países problemáticos do Leste da Ásia estão mostrando, e cada vez mais claramente, o esgotamento dos esquemas de emergência que vêm sendo arquitetados para apagar incêndios financeiros internacionais.
Agora, em agosto, a Rússia não conseguiu mobilizar apoio adicional e acabou em moratória. Os países do Grupo dos 7 parecem já não ter condições políticas e financeiras de patrocinar novas intervenções em socorro de países problemáticos e seus credores e investidores externos.
Em última análise, a Rússia é mais uma vítima do canto de sereia das finanças internacionais. E o colapso russo confirma, talvez de maneira especialmente dramática, aquilo que outras crises recentes vinham ensinando ao longo dos anos 90: a liberalização financeira e ampliação dos fluxos internacionais de capital foram longe demais.
Diante do quadro de desordem financeira internacional, a última coisa que países periféricos deveriam fazer é abrir-se indiscriminadamente a capitais externos, agarrar-se a bandas cambiais estreitas e acumular déficits elevados e pesados compromissos financeiros de curto prazo. Foi o que fez a Rússia nos últimos anos.
Qualquer semelhança com realidades mais próximas ao leitor é mera coincidência.


Paulo Nogueira Batista Jr., 43, economista e professor da Fundação Getúlio Vargas, escreve às quintas-feiras nesta coluna. E-mail: pnbjr@ibm.net



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