São Paulo, quinta, 20 de agosto de 1998

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LUÍS NASSIF

Uma história sem fim

Uma das mais ousadas e insólitas ações judiciais de que se tem conhecimento na história recente do país. Não há outra maneira de caracterizar a tentativa de sacar R$ 32 milhões da Cetip (Central de Custódia e Liquidação Financeira de Títulos) em títulos custodiados do Banco do Nordeste do Brasil (BNB), baseando-se em decisões de unicamente dois juízes de primeira instância: um, de uma cidade do interior do Ceará; outro, de uma vara cível de São Paulo, capital.
A ação foi proposta em Itaiçaba (CE). Dada a sentença, o juiz Francisco Bizerrio Azevedo de Queiroz emitiu carta precatória para uma das varas cíveis de São Paulo, determinando busca e apreensão dos recursos nas agências do BNB e liberação para o empresário Antônio Nóbrega.
A carta precatória foi distribuída normalmente às 14h57 de 13 de agosto para a 20ª Vara Cível do Fórum Central de São Paulo. O despacho ficou pronto no dia seguinte, com uma inovação: em vez de ir até as agências (que não costumam manter tanto valor em caixa), determinou o desbloqueio de títulos do BNB custodiados na Cetip.
Do valor em questão, R$ 3,8 milhões referiam-se à tutela antecipada (antecipação de um valor que está sendo julgado); R$ 28,2 milhões, a multas.
O dinheiro deveria ser liberado no banco determinado por Nóbrega, para ser movimentado livremente. O BNB não foi consultado; nem sequer se cuidou de averiguar a regularidade do processo.
Anos atrás, esse mesmo Nóbrega assinou contrato de venda de fazendas de sua propriedade para um aventureiro estrangeiro que chegou ao Ceará dizendo-se exportador de frutas (colunas de 2 de fevereiro e 11 de maio deste ano). As propriedades foram oferecidas em garantia para o BNB, para a obtenção de um crédito rotativo milionário.
No meio do caminho, descobriu-se que o estrangeiro era um golpista, mas US$ 200 mil já tinham sido emprestados. Na hora de executar as garantias, Nóbrega apresentou documento desfazendo a venda para o estrangeiro. As garantias simplesmente viraram fumaça.

Lucros malucos
O BNB não se conformou e entrou com uma ação que culminou com a nomeação, pela Justiça cearense, de um interventor para os negócios de Nóbrega. O interventor teria permitido a deterioração de equipamentos.
Nóbrega entrou com ação de lucros cessantes contra o banco. O último balanço das empresas de seu grupo, antes da intervenção, mostrava faturamento de R$ 900 mil anuais e prejuízo de R$ 500 mil.
Sem nem sequer apresentar cálculos e provas, o empresário conseguiu que juízes cearenses e um ministro do Tribunal de Justiça estadual aceitassem a tese estapafúrdia de que sua empresa tinha condições potenciais de faturar R$ 50 milhões por ano e de ter lucros de R$ 25 milhões -só não obtendo esse resultado por culpa do interventor. O empresário obteve sentenças iniciais favoráveis e uma "tutela antecipada" (pagamento antecipado, antes da sentença final) no valor de R$ 3,8 milhões.
Quando o caso chegou à imprensa, essa operação atrevidíssima foi suspensa.
O BNB recorreu ao Tribunal de Justiça do Ceará, que, por dois votos a um (o voto a favor sempre do mesmo ministro, desembargador José Mauri Moura Rocha), descontinuou a sentença do juiz Washington Oliveira, de Jaguaruana, obrigando a novos procedimentos para recolhimento de provas. Ao mesmo tempo, o BNB obteve decisões liminares dos ministros Rui Rosado de Aguiar e Anselmo Santiago, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), interrompendo o pagamento da "tutela antecipada".

Ação paralela
Como o processo estava no TJ do Ceará, Nóbrega obteve cópias dela e ingressou com ação na comarca de Itaiçaba, que nem sequer tinha entrado no caso até então. A precatória chegou a São Paulo, onde uma juíza despachou ordenando a execução.
Felizmente, o BNB foi avisado por terceiros e pode interromper a execução a tempo. Agora, os advogados do BNB apresentaram as três sentenças favoráveis, e houve um remanejamento corriqueiro de processos, que acabou destinando o processo a um outro juiz, que agora decidiu fazer o óbvio: informar-se junto à Justiça cearense sobre a legalidade da ação.
Nada indica que tenha havido conluio em São Paulo. Houve distribuição normal para a 20ª Vara. Mas a facilidade com que se manda liberar dinheiro público nesse montante é estupenda. De repente, apenas com a decisão de dois juízes -o que emitiu o precatório e o que despachou-, é possível esvaziar as reservas bancárias de um banco público e transferi-las livremente a uma terceira pessoa.
Se o BNB não soubesse por terceiros e a Cetip não tivesse aguardado pelos advogados do banco, esse dinheiro teria virado fumaça.
O federalismo é peça central do regime democrático consagrado pela Constituição de 1988. Mas -insisto- há a necessidade de um poder superior que efetue uma enorme correição na Justiça cearense. Até para a defesa da reputação dos magistrados sérios que atuam no Estado.


E-mail:lnassif@uol.com.br


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