São Paulo, sexta-feira, 20 de dezembro de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Já vivemos em 2003

LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS

A semana que termina foi muito rica em ensinamentos sobre o que nos espera em 2003. Na política e na economia. Um novo tempo começa e renova a energia de todo aquele que faz da análise dos fatos sua atividade profissional dominante. A velocidade com que o novo governo Lula impõe-se sobre todos nós faz correr as horas em um ritmo alucinante. Escrevo minha coluna semanal pleno de idéias e pensamentos. É necessário um esforço muito grande para não deixar apenas a emoção comandar meus movimentos no teclado do computador. As mudanças do PT como partido político nesses últimos dias provocam em mim, vítima que fui de seu comportamento anterior no campo da oposição, reações muito fortes e difíceis de serem controladas. Mas sinto que preciso manter minha razão, como força dominante das palavras que faço chegar a meus leitores habituais. Não quero incomodá-los com questões pessoais neste momento em que conhecer o futuro do Brasil é uma preocupação de todos nós.
Mas vamos aos fatos! Começo com o comportamento do mercado financeiro nesses últimos dias: queda na cotação do dólar e no risco Brasil; colapso das taxas de juros cobradas pelos investidores durante os últimos meses, para rolar a dívida pública interna indexada ao dólar, e o claro indício de que o dinheiro especulativo de curto prazo, que havia fugido do Brasil, já está de volta. Em outras palavras, o país começa a sair da armadilha de curto prazo em que havia caído, depois que a vitória de Lula ficou evidente para todos. Como se diz no interior, matou a cobra e mostrou o pau!
Há alguns dias, o Banco Central foi obrigado a pagar a escandalosa taxa de 37% ao ano e mais a variação do dólar para vender títulos públicos com vencimento no primeiro dia útil de abril próximo. Esses mesmos títulos são negociados, hoje, com juros de menos de 20% ao ano, além da correção cambial do período. Na última quinta-feira, em leilão realizado já sob o signo desses novos tempos em que vivemos, o BC colocou papéis cambiais que vencem no primeiro dia útil de julho -cobrindo, portanto, o primeiro semestre do próximo ano- com juros abaixo de 20% ao ano. No mesmo leilão, conseguiu vender títulos com vencimento em janeiro de 2004, pagando, além da correção cambial do período, juros pouco acima de 20% ao ano.
Para o analista experiente e atento, esses são sinais evidentes de que estamos saindo do encilhamento da dívida pública interna que foi o marco dos últimos meses. Os juros são ainda elevados, sinal claro das dificuldades estruturais em que nos metemos e que ainda persistem, mas uma esperança abre-se sem dúvida para o novo governo. Poderia citar outros sinais claros de melhora na percepção dos mercados em relação ao futuro, mas a evidência dos juros nos papéis cambiais é suficiente.
Todo esse brutal ajuste nos preços dos principais ativos financeiros tem uma razão única: a percepção, cada dia mais clara, da mudança de comportamento do PT da oposição para o PT do governo. Não se conhece, na história recente do Brasil, uma mudança com essas velocidade e intensidade. E com essa cara de pau!
Meu leitor deve lembrar-se ainda das críticas que o presidente Fernando Henrique Cardoso recebeu das hostes petistas quando passou a governar com uma agenda liberal pró-mercado. Foram buscar em seus escritos dos anos 60 e 70 conceitos em oposição à linha política de seu governo e fizeram disso um escândalo. O presidente teve a coragem de dizer que o cobrassem não pelo que havia escrito em seus tempos de intelectual, mas sim pelo que fazia como presidente de todos os brasileiros.
Já o PT não teve a coragem de fazer isso de maneira explícita e clara e, por isso, está pagando -e vai ainda pagar- muito caro por essa contradição. A sabatina no Senado Federal, que antecedeu a aprovação do nome de Henrique Meirelles como o presidente do Banco Central escolhido por Lula, foi constrangedora. Apesar do comedimento e da civilidade dos partidos que serão oposição ao novo governo!
Mas vamos deixar de lado essa questão ética, principalmente em relação aos militantes mais à esquerda do PT, e conversar um pouco sobre o que esperar no campo econômico do partido da estrela recém-convertido à economia de mercado e à ortodoxia econômica. Essa conversão não foi fruto de um processo amplo de reflexão política e dos valores econômicos históricos do partido, como ocorreu no caso famoso do Partido Socialista Obreiro Espanhol. Não foi também motivada pelo fracasso de uma política econômica de um governo socialista, como o que ocorreu na França, em 1982. Em ambos os casos, houve tempo e motivação para que as novas diretrizes econômicas fossem discutidas e absorvidas por quadros políticos e administrativos do próprio partido.
Isso não ocorreu com o PT, e prova disso é a dificuldade que o novo governo vem encontrando para formar sua equipe econômica. No caso do presidente do BC, o PT foi obrigado a buscar no PSDB um quadro com as qualidades necessárias para comandar essa área complexa e decisiva. Além disso, foi obrigado ao desgaste de ver um profissional acusado pelo próprio partido de comportamento ilícito nos fatos ligados à flutuação do real em 1999 ter de ser defendido de forma envergonhada no plenário do Senado.
Essa falta de legitimidade na adoção de uma agenda econômica de terceiros, estranha ao partido e à sua história, me faz lembrar de outro fato histórico recente como o paradigma mais próximo dessa conversão petista. Na Argentina, o ex-presidente De la Rúa venceu as eleições como candidato de um partido político de oposição e com um discurso muito duro sobre a responsabilidade do governo, que terminava seu mandato, pelas dificuldades econômicas que viviam os argentinos. Vitorioso, assumiu por razões oportunistas o modelo econômico de seu antecessor, com um discurso em que afirmava que as dificuldades de então eram frutos de uma gestão incompetente da economia e não do modelo em si. O mesmo argumento foi usado pelo futuro ministro da Fazenda, na última quarta-feira. Não preciso detalhar o que ocorreu com De la Rúa para terminar meu raciocínio...
Já disse várias vezes que a armadilha financeira em que nos metemos exigirá do próximo governo uma política conservadora e, em muitos momentos, burra -como aconteceu agora na última reunião do Copom- para podermos voltar a respirar. Mas não pode o futuro ministro da Fazenda se entusiasmar com o modelo atual e esquecer-se de que foi ele a causa principal de nosso colapso econômico recente.
Volto a insistir que, paralelamente à manutenção dos valores do malanismo na gestão da economia no próximo ano, o futuro governo deve desenvolver uma nova agenda de trabalho que trate das questões centrais de hoje: a vulnerabilidade externa e a questão dos juros internos. Não é uma tarefa trivial para ser levada a um bom termo, mas será uma armadilha terrível se não for enfrentada adequadamente. Que a euforia que certamente teremos no primeiro trimestre do próximo ano não faça o governo esquecer da magnitude e da urgência dos problemas que tem pela frente.


Luiz Carlos Mendonça de Barros, 59, engenheiro e economista, é sócio e editor do site de economia e política Primeira Leitura. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo FHC).

Internet: www.primeiraleitura.com.br
E-mail - lcmb2@terra.com.br


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