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OPINIÃO ECONÔMICA
O realismo do impossível
RUBENS RICUPERO
"Sejam realistas: exijam o impossível." A frase do surrealista
André Breton tornou-se, juntamente com "É proibido proibir", a marca registrada de
maio de 68. Trinta anos depois,
nada revela melhor como o
mundo ficou mais triste do que
comparar as palavras de Breton
com a "utopia do possível", expressão que fomos pedir emprestada ao professor Albert
Hirschman.
Maio de 68 é um desses acontecimentos que continuam a
inspirar as leituras mais contraditórias. Alguns como o general de Gaulle só viram nela a
"chienlit", a baderna. O ensaísta Pascal Bruckner acha que,
mais que movimento político,
68 foi sobretudo uma insurreição libertária, de tradição
anarquista e surrealista. A retórica ultra-esquerdista apenas
mascarava o individualismo e,
no fundo, a transição do maoísmo para o conformismo consumista dos "yuppies" dos anos 80
teria sido menos uma renegação do que uma continuidade.
Outros, talvez mais perto da
verdade, suspeitam que aquela
explosão, mesmo fugaz, era sinal de profunda "crise de civilização", de um sentimento difuso e confuso de mal-estar, de
enjôo com a sociedade de consumo, a mercantilização de tudo, a pressão de uma competição exacerbada e sem sentido.
Condenada logo a se esgotar
como toda detonação, ela teria
deixado um fundo inquietante
de angústia coletiva, o vírus reprimido da peste que hiberna à
espera de nova oportunidade.
Se isso for certo, a insurreição
de 68 teria de certa forma pressentido e antecipado o esgotamento de uma fase brilhante do
capitalismo ocidental, os "Trinta Gloriosos", como chamam os
franceses os 30 anos ininterruptos de expansão econômica,
baixa inflação e desemprego insignificante que caracterizaram
o pós-guerra. Esse período só
iria receber o golpe de morte
pouco depois, com os dois choques do petróleo de 73 e 79, a
inflação e a dolorosa cura recessiva que se seguiu. Mas, já a
partir do fim dos anos 60, o
anúncio do fim estava claramente escrito na parede: derrota na guerra do Vietnã, assassinato de Martin Luther King, esmagamento da Primavera de
Praga, emergência do terrorismo anti-sistema e, entre nós, as
trevas do AI-5.
Com a perspectiva do tempo,
percebemos que se acumulavam
os sintomas do exaurimento de
um ciclo e apareciam os primeiros sinais do que o sociólogo
Robert Castel denominaria de
"As Metamorfoses da Questão
Social". No momento em que "a
civilização do trabalho" surgida da revolução industrial parecia ter definitivamente integrado a massa da população
por meio do regime de assalariado e da proteção social, todo
o edifício começa a ruir com o
desmantelamento do Estado social e a precarização do emprego.
É em 1974 que vai surgir na
França o conceito de "exclusão"
com a publicação do livro "Os
Excluídos, um Francês em Cada
Dez". Na época de Marx e Engels, o problema era a pauperização da classe operária pela
industrialização nascente. Do
começo deste século até a Segunda Guerra Mundial, a questão social se expressa na desigualdade e na luta de classes.
Depois de 1974, um novo paradigma do disfuncionamento da
sociedade passa a dominar o
debate: a exclusão como resultado do duplo fenômeno do desemprego estrutural, permanente e da dissolução dos vínculos sociais.
Numa sociedade onde só o
trabalho possibilita integração
e identidade, o sem-emprego, o
que não faz nada de útil socialmente não pode existir em termos sociais. Os desempregados
não existem, mas ao mesmo
tempo estão bem presentes, pode-se até dizer que estão sobrando. E isso acontece justamente quando a família, a igreja, o sindicato, o partido, o Estado e todas as estruturas comunitárias que poderiam amparar o excluído sofrem, por
sua vez, o efeito corrosivo da
ruptura e da dissolução. No
momento em que mais precisa
de solidariedade, o excluído, o
"inútil para o mundo", está desesperadamente só e abandonado.
Essa tragédia das sociedades
industrializadas projeta uma
sombra de angústia sobre o século que termina. É como um
mergulho no passado de insegurança, exploração e pauperismo dos romances de Charles
Dickens, uma realização do
verso de T.S. Eliot: "No meu fim
está o meu começo; no meu começo está o meu fim".
Mas o que dizer de nós no
Brasil e na América Latina? Há
mais de um século sonhamos
em refazer o caminho dos países avançados e, como eles, integrar por meio do trabalho assalariado numa economia industrial moderna a massa de
pobres, de subempregados, de
trabalhadores rurais sem terra
que herdamos da escravidão e
do latifúndio. Até há poucos
anos, o sonho parecia possível e,
embora com inflação, desigualdade e concentração de renda,
aos trancos e barrancos íamos
seguramente expandindo o número de empregos, aumentando o conjunto dos assalariados.
Agora, porém, mesmo quando
nossa economia se expande, ela
cada vez gera menos empregos.
Ameaça-nos o pior de dois
mundos: não completamos a
integração da nação e já vivemos as angústias da pós-industrialização. Coexistem no nosso
continente problemas de tempos históricos diferentes: a pauperização, a desigualdade e
agora a exclusão. De nada serve, por isso, importar fórmulas
ou políticas incapazes de resolver nossos problemas e que ainda nos acrescentarão outros.
Para nós, a prioridade é clara:
completar a integração por
meio do pleno emprego, reduzir
a desigualdade e prevenir a exclusão. Num ano eleitoral e definidor de rumos, a questão
central é uma só: por que não
estamos conseguindo atingir esses objetivos e quais são os caminhos do realismo para aí
chegar e realizar não o possível
ou o impossível, mas simplesmente o necessário?
Rubens Ricupero, 60, secretário-geral da
Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre
Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro
da Fazenda (governo Itamar Franco), escreve
aos sábados nesta coluna.
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