São Paulo, sábado, 21 de fevereiro de 1998

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OPINIÃO ECONÔMICA
O realismo do impossível

RUBENS RICUPERO

"Sejam realistas: exijam o impossível." A frase do surrealista André Breton tornou-se, juntamente com "É proibido proibir", a marca registrada de maio de 68. Trinta anos depois, nada revela melhor como o mundo ficou mais triste do que comparar as palavras de Breton com a "utopia do possível", expressão que fomos pedir emprestada ao professor Albert Hirschman.
Maio de 68 é um desses acontecimentos que continuam a inspirar as leituras mais contraditórias. Alguns como o general de Gaulle só viram nela a "chienlit", a baderna. O ensaísta Pascal Bruckner acha que, mais que movimento político, 68 foi sobretudo uma insurreição libertária, de tradição anarquista e surrealista. A retórica ultra-esquerdista apenas mascarava o individualismo e, no fundo, a transição do maoísmo para o conformismo consumista dos "yuppies" dos anos 80 teria sido menos uma renegação do que uma continuidade.
Outros, talvez mais perto da verdade, suspeitam que aquela explosão, mesmo fugaz, era sinal de profunda "crise de civilização", de um sentimento difuso e confuso de mal-estar, de enjôo com a sociedade de consumo, a mercantilização de tudo, a pressão de uma competição exacerbada e sem sentido. Condenada logo a se esgotar como toda detonação, ela teria deixado um fundo inquietante de angústia coletiva, o vírus reprimido da peste que hiberna à espera de nova oportunidade.
Se isso for certo, a insurreição de 68 teria de certa forma pressentido e antecipado o esgotamento de uma fase brilhante do capitalismo ocidental, os "Trinta Gloriosos", como chamam os franceses os 30 anos ininterruptos de expansão econômica, baixa inflação e desemprego insignificante que caracterizaram o pós-guerra. Esse período só iria receber o golpe de morte pouco depois, com os dois choques do petróleo de 73 e 79, a inflação e a dolorosa cura recessiva que se seguiu. Mas, já a partir do fim dos anos 60, o anúncio do fim estava claramente escrito na parede: derrota na guerra do Vietnã, assassinato de Martin Luther King, esmagamento da Primavera de Praga, emergência do terrorismo anti-sistema e, entre nós, as trevas do AI-5.
Com a perspectiva do tempo, percebemos que se acumulavam os sintomas do exaurimento de um ciclo e apareciam os primeiros sinais do que o sociólogo Robert Castel denominaria de "As Metamorfoses da Questão Social". No momento em que "a civilização do trabalho" surgida da revolução industrial parecia ter definitivamente integrado a massa da população por meio do regime de assalariado e da proteção social, todo o edifício começa a ruir com o desmantelamento do Estado social e a precarização do emprego.
É em 1974 que vai surgir na França o conceito de "exclusão" com a publicação do livro "Os Excluídos, um Francês em Cada Dez". Na época de Marx e Engels, o problema era a pauperização da classe operária pela industrialização nascente. Do começo deste século até a Segunda Guerra Mundial, a questão social se expressa na desigualdade e na luta de classes. Depois de 1974, um novo paradigma do disfuncionamento da sociedade passa a dominar o debate: a exclusão como resultado do duplo fenômeno do desemprego estrutural, permanente e da dissolução dos vínculos sociais.
Numa sociedade onde só o trabalho possibilita integração e identidade, o sem-emprego, o que não faz nada de útil socialmente não pode existir em termos sociais. Os desempregados não existem, mas ao mesmo tempo estão bem presentes, pode-se até dizer que estão sobrando. E isso acontece justamente quando a família, a igreja, o sindicato, o partido, o Estado e todas as estruturas comunitárias que poderiam amparar o excluído sofrem, por sua vez, o efeito corrosivo da ruptura e da dissolução. No momento em que mais precisa de solidariedade, o excluído, o "inútil para o mundo", está desesperadamente só e abandonado.
Essa tragédia das sociedades industrializadas projeta uma sombra de angústia sobre o século que termina. É como um mergulho no passado de insegurança, exploração e pauperismo dos romances de Charles Dickens, uma realização do verso de T.S. Eliot: "No meu fim está o meu começo; no meu começo está o meu fim".
Mas o que dizer de nós no Brasil e na América Latina? Há mais de um século sonhamos em refazer o caminho dos países avançados e, como eles, integrar por meio do trabalho assalariado numa economia industrial moderna a massa de pobres, de subempregados, de trabalhadores rurais sem terra que herdamos da escravidão e do latifúndio. Até há poucos anos, o sonho parecia possível e, embora com inflação, desigualdade e concentração de renda, aos trancos e barrancos íamos seguramente expandindo o número de empregos, aumentando o conjunto dos assalariados.
Agora, porém, mesmo quando nossa economia se expande, ela cada vez gera menos empregos. Ameaça-nos o pior de dois mundos: não completamos a integração da nação e já vivemos as angústias da pós-industrialização. Coexistem no nosso continente problemas de tempos históricos diferentes: a pauperização, a desigualdade e agora a exclusão. De nada serve, por isso, importar fórmulas ou políticas incapazes de resolver nossos problemas e que ainda nos acrescentarão outros. Para nós, a prioridade é clara: completar a integração por meio do pleno emprego, reduzir a desigualdade e prevenir a exclusão. Num ano eleitoral e definidor de rumos, a questão central é uma só: por que não estamos conseguindo atingir esses objetivos e quais são os caminhos do realismo para aí chegar e realizar não o possível ou o impossível, mas simplesmente o necessário?


Rubens Ricupero, 60, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), escreve aos sábados nesta coluna.



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