São Paulo, domingo, 21 de julho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LUÍS NASSIF

O poeta clássico da MPB

A música popular brasileira contemporânea tem o mais notável contingente de instrumentistas da história, cantores e cantoras de nível, compositores competentes e de estilo variado, mas falta alguma coisa para explodir. A nova geração, dos sons e dos ritmos variados, produziu poucos letristas maiúsculos. Tem alguns ótimos letristas, mas em proporção muito inferior aos compositores. A consequência é uma enxurrada de boas melodias escoradas em letras sofríveis.
E, no entanto, ouso dizer que, na música popular cantada, a letra talvez seja mais significativa que a melodia. Os grandes clássicos da MPB sempre partiam de uma grande letra que podia ser acompanhada ou não por uma grande música. Mas a letra sempre foi fundamental.
Historicamente, a MPB produziu grandes letristas, além dessa mistura fantástica de grandes letristas e compositores simultâneos, como Noel Rosa, Ari Barroso, Tom Jobim, Milton Nascimento e, mais especificamente, Chico, Caetano e Gil.
Mas produziu grandes letristas individuais. Fora os clássicos em atividade, como o incrível Paulo César Pinheiro (um caso único de qualidade e quantidade), Aldir Blanc, Hermilo Bello de Carvalho e os compositores-letristas, há três letristas fundamentais na nossa música: Vinicius de Moraes, o grande autor do pós-guerra, fazendo a transição para o romantismo moderno da bossa nova, Orestes Barbosa, o primeiro poeta do Rio que se urbaniza, e Luiz Peixoto.
Foi sem paralelo a influência de Vinicius na música brasileira, mas o letrista da minha predileção, o poeta com quem sempre me encantei foi Luiz Carlos Peixoto de Castro, de nome artístico Luiz Peixoto, maior autor da história dos teatros de revista, caricaturista famoso, carnavalesco, capista de livros, designer de carros (fez protótipo para a fábrica de motocicleta Belfort, de Paris) e letrista inovador.
Começou sua carreira como caricaturista de "O Malho" de Raul Pederneiras. Em 1911 estreou no teatro de revista, com "Seiscentos e Seis", com Carlos Bittencourt, musicado por Chiquinha Gonzaga.
Compôs 110 peças de revista, como o "Abre Alas", com a mesma Chiquinha. Teve outro notável parceiro no teatro, o maestro Sá Pereira, algo ignorado nos últimos anos, mas autor de inúmeras peças e do imortal "Chuá Chuá". Com Luiz Peixoto, Sá Pereira compôs uma das músicas preferidas de minha mãe, o "Casinha da Colina" ("Você sabe de onde eu venho / de uma casinha que eu tenho / fica à beira de um pomar").
Era boêmio militante. Seu grupo era integrado pelo que de melhor foi produzido pela intelectualidade boemia do Rio. Tinha Luiz Edmundo, Portinari, Jaime Ovalle, Vasco Leitão da Cunha. Mas a sua imortalização ocorreu na música, onde acumulou parceiros, de Heckel Tavares a Donga, de Custódio Mesquita a Ari Barroso -com quem formou uma das mais históricas parcerias da música.
Um de seus primeiros clássicos foi "Ai, Ioiô". Henrique Voegeler havia composto a música, mas a letra não acontecia. Começou com uma tentativa de Cândido Costa, que não deu certo. Freire Jr., autor de revistas e da valsa "Revivendo o Passado", fez sua tentativa, que não vingou. Coube a Luiz Peixoto dar o toque final em um clássico da música brasileira: "Ai iôiô / Eu nasci pra sofrê / Fui oiá pra você / Meu zoínho fecho...".
Os anos 20 foram marcados pela influência da música interiorana, que resultou em uma escola de composições seresteiras de primeira qualidade. "Ai, Ioiô" pertence a essa escola, assim como outro clássico de Peixoto, "Sussuarana", de 1926, ("Faz três sumana / numa festa de Santana / o Zezé Sussuarana me chamou pra conversar..."). Com Heckel, Peixoto compôs "Casa de Caboclo" e "Azulão".
A parceria com Ari Barroso começou em 1929, mesma época em que o compositor atuava profissionalmente em Poços de Caldas. É de 1932 um dos maiores clássicos da dupla, "Maria" ("Maria, o seu nome principia / na palma da minha mão"). Dos anos 30 é outro clássico, o "Por Causa dessa Cabocla" ("À tarde / Quando de volta da serra / Com os pés sujinhos de terra / Vem a cabocla passar"). A relação de parceria é enorme e abarca um longo período, dos anos 30 aos anos 50, quando ambos compõem "É Luxo Só".
Mas a música que sempre me lembrará Luiz Peixoto foi composta em 1934, tendo como parceiro Ari Barroso e como musa um personagem da vida contemporânea carioca, mas de presença intemporal na literatura: a mulher no desvio, sem nome, que nasceu gauche na vida, e cuja história começava "no dia em que apareci no mundo / juntou uma porção de vagabundo da orgia". Foi "Batucada da Vida", das letras fundamentais da discografia brasileira.

E-mail - lnassif@uol.com.br


Texto Anterior: Lições Contemporâneas: Mudar para crescer
Próximo Texto: Ganância Infecciosa: Escândalos desafiam hegemonia dos EUA
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.