UOL


São Paulo, quarta-feira, 22 de janeiro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGO

Economia fechada e o fardo da dívida latino-americana

MARTIN WOLF
DO "FINANCIAL TIMES"

Ao longo dos últimos cinco anos, o financiamento para os mercados emergentes morreu. Os únicos influxos líquidos de capital tomaram a forma de investimento estrangeiro direto. Essa é a segunda vez, desde a Segunda Guerra Mundial, que os empréstimos secaram, a primeira tendo surgido depois da moratória mexicana de 1982. Uma vez mais, a mania de empréstimos deixou muitos destroços para trás.
No começo dos anos 90, as instituições de crédito privadas caíram sobre as economias de mercado emergente como os israelenses um dia o fizeram na terra prometida. A história está bem descrita no mais recente relatório sobre influxos de capital para as economias de mercado emergente do Instituto de Finanças Internacionais, de Washington. Por volta de 1996, o influxo líquido de empréstimos chegou a US$ 207 bilhões, enquanto o influxo líquido total de capitais foi de US$ 335 bilhões, incluindo US$ 92 bilhões em investimento estrangeiro direto.
Foram os dias dourados. Depois vieram as crises asiática, russa e brasileira, entre junho de 1997 e janeiro de 1999. As taxas de juros dispararam, e os influxos despencaram. Os empréstimos líquidos estão próximos do zero desde 1998. Os bancos comerciais vêm removendo seu dinheiro, ano após ano. Os empréstimos não bancários eram ainda de US$ 36 bilhões em 1999 e US$ 40 bilhões em 2000, mas esse total diminuiu para US$ 8 bilhões em 2001 e uma estimativa de US$ 15 bilhões em 2002. O investimento estrangeiro direto se manteve robusto, embora ele também tivesse caído de um pico de US$ 149 bilhões em 1999 para uma estimativa de US$ 107 bilhões no ano passado.
Os fluxos de capital continuam sujeitos a ciclos de euforia e pânico, com os excessos dos primeiros preparando o terreno para o sofrimento dos segundos. Mas nem todas as economias estão tão bem preparadas para enfrentá-los. Uma vez mais, a Coréia do Sul demonstrou sua flexibilidade. A Argentina está no extremo oposto da curva de distribuição.

Causas para a crise
Uma explicação esclarecedora das dificuldades argentinas e, por extensão, de muitos países da América Latina pode ser encontrada em um estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
O estudo atribui os problemas dos países que analisa a três características: economias fechadas ou com baixo volume de importações como proporção do Produto Interno Bruto (PIB), fator conhecido como C; altos níveis de dívida, especialmente pública (D); e desequilíbrios cambiais (M). Os países CDM, diz o estudo, estão à beira de um acidente o tempo todo. As dificuldades são exacerbadas pelo uso de uma taxa de câmbio fixa para estabilizar a inflação, como ocorreu na Argentina.
Os influxos de capital para a América Latina atingiram um pico de cerca de 5% do PIB da região no segundo trimestre de 1998. Despencaram no ano seguinte para cerca de 1% do PIB, valor em que estão desde então. A contração do déficit em conta corrente latino-americano entre o terceiro trimestre de 1998 e o final de 2000 foi de 5% do PIB, o equivalente a uma redução de US$ 500 bilhões no déficit dos EUA em apenas dois anos. Não surpreende em nada, portanto, que o processo tenha sido tão doloroso.
Uma contração tão forte no déficit exige grande redução nos gastos com bens comerciáveis internacionalmente. Mas, com uma taxa real de câmbio fixa, a redução nos gastos com produtos não comerciáveis internacionalmente precisa ser proporcional à dos comerciáveis. Então surge uma profunda recessão. Quanto mais fechada for a economia, maior precisará ser a desvalorização real adotada como compensação.
Eis um exemplo simples. Presumam que as importações de bens e de todos os serviços respondam por 15% do PIB de um país, enquanto as exportações são de 10% do PIB, o que gera um déficit em conta corrente de 5% do PIB. Presumam igualmente, a bem da simplicidade, que as exportações fiquem estáticas a curto prazo. As importações teriam de cair um terço para que o déficit em conta corrente desaparecesse. Sem depreciação real, os gastos na economia como um todo precisariam cair em igual proporção.
Agora imaginem outra economia, cuja parcela de importações nos gastos seja de 40% do PIB, mas com déficit em conta corrente semelhante. Os gastos dessa economia com as importações, e portanto sua atividade econômica, precisam cair apenas um oitavo. Assim, a recessão necessária para eliminar um déficit em uma economia aberta (como a da Coréia do Sul) é bem menor do que a necessária em uma economia fechada (como a da Argentina).

Desvalorização na AL
Se as mudanças relativas de preços, por meio de uma depreciação real da taxa de câmbio, transferirem gastos das importações para a produção doméstica a fim de compensar a recessão, a depreciação deve ser muito maior, caso as demais variáveis se mantenham, no caso da Argentina do que no caso da Coréia do Sul. O papel do BID indica que a depreciação real necessária na Argentina, Brasil e México para eliminar os déficits em conta corrente era de cerca de 50% em cada caso, em 1998.
Mesmo que a taxa real de câmbio da Argentina, sob sua âncora cambial, estivesse equilibrada antes de 1998, ela se tornou desesperadamente supervalorizada depois dessa data. A depreciação real, por meio de uma inflação relativamente baixa, foi apenas um terço da que era necessária. A longa recessão era inevitável. E o mesmo se aplicava ao desmantelamento da âncora cambial.
Essa peça tem um segundo ato. Se um país requer grande depreciação em sua taxa de câmbio e possui um estoque elevado de papéis de dívida em moeda estrangeira, seus problemas se tornam gravíssimos. Na América Latina, histórias prolongadas de finanças públicas débeis tornaram as pessoas avessas a ativos em moeda nacional. De modo que os governos terminaram por tomar empréstimos em moeda estrangeira. Uma depreciação real de 50% tem efeito considerável sobre a relação entre a dívida pública e o PIB. E torna necessário um aperto fiscal, em meio a uma recessão.

Consequências
E aí começa o terceiro ato. Quando desabam os influxos de capital privado, o setor oficial cobre a deficiência, com um influxo líquido de US$ 22 bilhões para a região em 2001 e uma estimativa de US$ 14 bilhões em 2002. Os credores esperavam que isso reanimasse a confiança. Mas não foi o que aconteceu. Na semana passada, enfrentamos uma das consequências: o refinanciamento da dívida da Argentina junto ao Fundo Monetário Internacional. Mas o grande desafio de reestruturação do excesso de dívidas pendentes ainda não foi encarado.
Por ora, os mercados estrangeiros de capital estão fechados. Isso eliminou novas tentações, mas deixa o sofrimento causado pelas tentações do passado. E a tentação sempre voltará. A verdade, porém, é que empréstimos em moeda estrangeira por economias fechadas são muito perigosos. Se os países não podem contrair dívidas em sua moeda, deveriam limitar seu endividamento severamente. Isso é ainda mais importante caso só possam tomar empréstimos sob classificações de crédito desfavoráveis, com grande ágio quanto aos ativos seguros.
Os devedores sensatos deveriam sempre encarar as instituições financeiras estrangeiras da maneira como os troianos foram um dia aconselhados a encarar os gregos que trouxessem presentes. Porque esses gregos levarão seus presentes embora na pior hora e da pior maneira. Que os países devedores (e os credores responsáveis) se acautelem.


Tradução de Paulo Migliacci


Texto Anterior: Opinião Econômica: A Presidência de um e de todos
Próximo Texto: Luís Nassif: Integração monetária do Mercosul
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.