São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 2006

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ARTIGOS

País em desenvolvimento deve abandonar moeda

Peter Parks - 22.jul.05/France Presse
Visitantes em exposição de cédulas de yuan em Pequim, na China; moedas de países em desenvolvimento são mais sensíveis a crises


BENN STEIL
ESPECIAL PARA O "FINANCIAL TIMES'

De todas as objeções que costumam ser levantadas contra a globalização -incluindo os danos que supostamente causa a igualdade de rendas, direitos dos trabalhadores, democracia e ambiente-, nenhuma é tão convincente quanto o caos que crises cambiais periodicamente causam nos países em desenvolvimento.
Economistas defensores da globalização, como Martin Wolf, do "Financial Times", e meu colega Jagdish Bhagwati, reconhecem que os fluxos de capital são seu calcanhar-de-aquiles. Wolf argumentou que, até agora, os ganhos gerados pela integração dos mercados emergentes aos mercados mundiais de capital "foram questionáveis, e os custos das crises, enormes". Bhagwati criticou a "liberalização financeira apressada e imprudente". Eu gostaria de dizer que eles estão errados, pois qualquer justificativa para controles de capital parece ser admissão de derrota diante dos sempre equivocados inimigos da globalização.
Ainda assim, é importante reconhecer que aquilo que vemos como globalização não é a mesma coisa que o liberalismo econômico clássico aplicado em escala mundial, e que a globalização moderna pode apresentar problemas mesmo que o liberalismo que lhe serve de arcabouço não tenha falhas. A melhor prova pode ser obtida no estudo de uma era muito anterior de globalização, entre o final da década de 1870 e 1914. Não só o mundo era, então, comparativamente bastante integrado, em indicadores comerciais, mas diversos dos indicadores financeiros também apontam para uma melhor integração. A paridade de poder aquisitivo e a equalização das taxas reais de juros se sustentavam internacionalmente em grau que não se vira até lá, e que não voltou a se repetir nas décadas posteriores. Os déficits e superávits médios, como porcentagem dos PIBs, eram duas vezes maiores do que os atuais. E alguns estudos demonstraram que os fluxos de capital faziam um trabalho mais eficiente ao equiparar o capital disponível às necessidades de investimento, no período.
Talvez o mais surpreendente seja o fato de que os fluxos de capital de curto prazo na realidade desempenhavam importante papel de estabilização: os déficits comerciais podiam ser financiados confiavelmente por influxos de curto prazo, estimulados por uma alta modesta nas taxas de juros de curto prazo. Além disso, embora crises financeiras ocorressem, a recuperação tendia a ser consideravelmente mais rápida.
O sistema monetário que evoluiu durante a globalização do final do século 19 e começo do século 20 era muito diferente do atual. Conhecido como "padrão-ouro", ele operava pelo uso voluntário de reservas de ouro pelos países como lastro para suas moedas nacionais, a uma taxa de câmbio fixa. O Banco da Inglaterra desempenhava papel essencial, já que o mundo confiava em sua dedicação a essa conversibilidade, o que dava aos investidores confiança para transferir fundos. Além disso, os países que enfrentavam crises financeiras em geral passavam por entradas, e não saídas, aceleradas de ouro. À medida que os preços dos ativos internos caíam, após uma crise, a expectativa de que as taxas de câmbio e os preços dos ativos retornassem aos níveis anteriores à crise devido ao compromisso dos governos para com o padrão-ouro estimulava as importações do metal.
O "sistema" monetário internacional criado depois de 1971 abarca cerca de 200 moedas, que circulam na forma de promissórias não passíveis de resgate. Durante a era da globalização com padrão-ouro, os preços das commodities se alinhavam no panorama internacional de maneira mais ou menos tão eficiente quanto se alinhavam entre as diferentes regiões de um mesmo país. Hoje, nos acostumamos a tal ponto a um mundo de moedas nacionais que passamos a considerar normal não o alinhamento internacional de preços de commodities, mas sim o movimento de toda a estrutura de preços de um país, para baixo e para cima, para ajustar a toda a estrutura de preços de um segundo país. Assim, uma queda no preço mundial de uma commodity como o café, em dólares, tende a não produzir a diversificação e o abandono das formas ineficientes de produção, gerando em lugar disso uma inflação que afeta toda a economia, e desvalorizações de câmbio nos países em que os exportadores de café tenham influência política. O banco central distorce todos os demais preços da economia para impedir a adaptação do país à queda nos preços mundiais do café. Essa é a raiz do desenvolvimento estagnado de muitos países mais pobres.

Estabilidade
O exemplo clássico dos motivos que justificam a livre flutuação cambial de uma moeda se baseia nos efeitos estabilizadores do uso da taxa de câmbio para proteger os juros internos contra movimentos nas taxas de juros estrangeiras, e a capacidade de reduzir taxas de juros para enfrentar recessões. Mas os indícios apontam para o oposto: sob regimes de câmbio livres, as taxas de juros dos países em desenvolvimento se tornam mais sensíveis às internacionais, e cresce a probabilidade de que tenham de subir em vez de cair, numa recessão, para impedir fuga de capitais.
Crises cambiais se tornaram agora uma séria preocupação, especialmente para países com regimes de câmbio fixo ou de âncora cambial. Nas duas décadas passadas, diversas crises afligiram países da América Latina e da Ásia, bem como nações nas fronteiras européias, especialmente Rússia e Turquia. O problema emergiu quando esses países tentaram aproveitar as oportunidades de um mercado internacional de capitais dominado pelo dólar. Para os países em desenvolvimento, isso acarreta risco fatal: os credores precipitam crises quando temem desvalorizações e moratórias das dívidas denominadas em dólares.
Em resumo, os países em desenvolvimento não vêem benefícios econômicos reais quando adotam uma política monetária independente. Suas taxas de juros na prática ficam atreladas às americanas, e suas importações de capital em dólares os expõem a crises cambiais que seriam evitadas pelo uso de um lastro em ouro como o que sustentava a globalização do século 19 e tornava impossível política econômica independente.

Conversão
Hoje, a melhor opção para os países em desenvolvimento cujo objetivo é uma integração segura à globalização seria substituir suas moedas por dinheiro aceito internacionalmente: dólar ou euro. O país com melhor desempenho econômico na América Latina em 2004 foi o politicamente volátil Equador, que cresceu 6,6% com inflação de 2,7%, a menor em 30 anos. O Equador dolarizou sua economia em 2000. Se a União Européia fosse sábia, mudaria radicalmente sua política quanto à ampliação da zona do euro e ofereceria assistência à Turquia e outros países para que adotassem a moeda de imediato.
Os inimigos da globalização se sentirão ultrajados diante de tamanho golpe contra a "soberania monetária". Mas esse conceito é um dos mais prejudiciais dentre os fetiches relacionados à soberania que surgiram no século 20. Moedas de prata espanholas e mexicanas circularam livremente nos EUA até o final do século 19. Papas medievais chegavam a condenar soberanos por adulterarem conteúdo de metal em suas moedas, e essa continua a ser a fatal solução dos países para cada dor de dente econômica que os aflige.
Basta estudar o caso da Argentina, que voltou a gerar inflação de dois dígitos, para constatar as reações adversas à globalização que emergem das ruínas depois de experiências fracassadas com moedas nacionais que ninguém deseja manter em seus portfólios. A era dourada da globalização do século 19 nos ensinou que os fluxos de capital não precisam ser o calcanhar-de-aquiles de sua atual reencarnação. A chave é reconstruir a globalização com base em moedas que as pessoas desejem usar sem que a isso sejam obrigadas.


Benn Steil é diretor de economia internacional no Conselho de Relações Internacionais e co-autor de "Financial Statecraft: The Role of Financial Markets in American Foreign Policy" [Estadismo financeiro: o papel dos mercados financeiros na política externa americana].


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