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OPINIÃO ECONÔMICA
O universo ao alcance da mão
RUBENS RICUPERO
"Nós, brasileiros , ainda
não conseguimos demonstrar a capacidade de administrar
nenhuma cidade de mais de 500
mil habitantes." Como tinha razão meu saudoso mestre de geografia humana, Fábio Macedo
Soares Guimarães, em 1959! Naquele tempo, o problema era restrito a poucas cidades, somente o
Rio e São Paulo tendo de lidar
com cifras de 3 milhões a 4 milhões. E agora, que são dezenas as
cidades com mais de 1 milhão, seremos capazes de aprender com a
experiência?
Não sei se a raiz de tudo é o tamanho, se é justo afirmar que a escala desmesurada é apenas a causa de toda sorte de males, sem nenhum aspecto reparador. Prefiro,
ao contrário, dar razão a Henry
James, para quem boa parte da
vantagem de Londres provinha,
pura e simplesmente, da imensidão do lugar. "A grande cidade
desdobra seu manto fumarento
sobre incontáveis raças e credos."
A variedade, o insólito era o que,
no século 19, impressionavam os
contemporâneos no espetáculo
cambiante e nunca monótono de
Paris e Londres. Elas continham,
segundo se dizia, "a originalidade
do universo", essência hoje de Nova York.
Será um acaso sem importância
que o essencial na geração de
idéias, valores, estilos da música
pop à moda, da política à literatura e artes visuais se produza nesses
três centros? Ou que Viena e, de
modo diverso, Berlim tivessem
perdido a condição de capitais da
inventividade intelectual quando
deixaram de atrair as pessoas de
talento de toda a Europa central e
do leste? E Buenos Aires, cuja efervescência cultural resiste às piores
crises -basta ver a qualidade do
seu cinema-, não deve parcela
disso a ter sido, há mais de um século, a primeira grande cidade
cosmopolita da América Latina?
Desse ponto de vista, o Brasil até
que não esbanja diversidade. Existe, sem dúvida, bastante variedade regional na cultura popular
brasileira, mas dentro de homogeneidade básica, em termos das três
influências que predominam na
origem e ao longo dos primeiros
séculos. A esse reservatório original aportaram água fresca e de sabor diverso correntes que infelizmente se limitaram no espaço radicando-se no centro-sul do país
-e no tempo- interrompendo-se logo após a Segunda Guerra
Mundial. Os poucos que chegaram mais tarde -coreanos, chineses, alguns judeus retardatários,
bolivianos, peruanos, rio-platenses- começam já a dar contribuição perceptível entre os estudantes
classificados no vestibular, na indústria de confecções, no ensino
universitário.
Em oposição à desavisada política uniformizadora do Estado Novo, reflexo de insegurança sobre a
própria identidade, precisamos de
política acolhedora e estimulante
da diversidade. Algo se avançou
na Constituinte em matéria de
dupla nacionalidade, mas falta
muito a fazer para superar os resquícios estadonovistas em relação
a vistos para estrangeiros, imigrantes temporários ou definitivos, refugiados, à extensão de direitos e oportunidades aos naturalizados. Nessas áreas, é mesquinha
nossa orientação, comparada à
dos EUA. Não compreendemos
que, como na biologia, a diversidade é fundamental para fecundar a criatividade social e cultural.
Uma boa ocasião para valorizar
a diversidade, para identificar
ações práticas, concretas, a fim de
encorajar a variedade cultural, é a
que se oferece a São Paulo, ao planejar a festa dos seus 450 anos. No
Quarto Centenário, em 1954, eu tinha 17 anos e aproveitei o que pude das exposições no Museu de Arte, então na rua 7 de abril, das
conferências, dos ciclos de cinema,
da memorável projeção de
"Greed", no cine Marrocos. Não
me lembro, porém, de que tivesse
havido um gesto de apreço pelo
aporte de milhares de mulheres e
homens anônimos, os quais, embora falando uma Babel de línguas, conseguiram coordenar-se
para construir a cidade. É fácil assinalar o que devemos aos nomes
conhecidos: os professores europeus da USP, os italianos do Teatro Brasileiro de Comédia e do cinema, Pietro e Lina Bardi, os refugiados excepcionais como Anatol
Rosenfeld, Paulo Ronai, Otto Maria Carpeaux. Tem-se às vezes a
impressão de que o grau de cosmopolitismo já foi maior, que esses gigantes foram morrendo sem substitutos, ao passo que desapareciam também, por falta de leitores,
livrarias estrangeiras, as dezenas
de jornais em italiano e outras línguas.
É preciso, portanto, no futuro,
estimular a vinda de gente diversa, abrir o país às correntes renovadoras do universo. Ao mesmo
tempo, não se deve deixar que
morra o que já temos, a diversidade herdada da imigração. Por
exemplo, as comunidades de italianos do sul, fiéis às suas festas
tradicionais: São Vito, Achiropita,
Casaluce, San Gennaro. Falei, em
meu último artigo, de um projeto
para valorizar a memória de uma
dessas comunidades do Brás, da
qual eu mesmo sou originário, a
dos pugliesi de São Vito. A mesma
inspiração poderia impulsionar
iniciativas similares, que explorassem as histórias dos hospitais, escolas, associações beneficentes,
clubes, criados pelas antigas "colônias": os sírios e libaneses da 25 de
Março, os judeus do Bom Retiro,
os japoneses da Liberdade, os
ucranianos e lituanos do Alto da
Mooca.
Atenção igual deveria ser dedicada à migração interna, pois, de
1950 para cá, São Paulo tem sido
constantemente enriquecida por
levas provenientes sobretudo do
Nordeste, mas também do norte
do Paraná após a crise do café, do
interior em geral. Um projeto cultural desse tipo para "co-memorar", isto é, lembrar juntos, em comunidade, os 450 anos, tem de
evitar dois perigos: o do sentimentalismo nostálgico ou heróico pelo
passado morto e o estereótipo do
pitoresco falso das novelas de TV.
Os imigrantes se integraram porque se beneficiaram da mobilidade social do período áureo do crescimento e sofreram o influxo da
poderosa força assimiladora da
cultura popular brasileira. Infelizmente, ficou de fora a fonte dessa
cultura, a massa do povo pobre
que já estava aqui, que engrossou
e formou a periferia disforme dessa e de outras grandes cidades do
país.
Para não ser um mero ajuntamento de pessoas que se segregam
e se entredevoram, a cidade tem
de ser fiel à sua raiz etimológica,
"civitas", a mesma de civilização e
de cidadania. Los Angeles, de
acordo com Chandler, tinha tanta
personalidade como um desses copos de papel que se usam e jogam
fora. Outros a descreveram como
"72 subúrbios em busca de uma cidade". Queriam dizer que a alma
de uma cidade depende de sua capacidade de unir, de criar laços de
comunidade entre cidadãos
iguais. Esse é o desafio de São Paulo e do Rio, de Belo Horizonte e
Recife, de Porto Alegre e Salvador:
conciliar a abertura para o universo de fora com a integração do
mundo de dentro, derrubar pela
solidariedade os muros que separam as subculturas geradas pela
desigualdade e a miséria.
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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