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São Paulo, domingo, 22 de junho de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

O universo ao alcance da mão

RUBENS RICUPERO

"Nós, brasileiros , ainda não conseguimos demonstrar a capacidade de administrar nenhuma cidade de mais de 500 mil habitantes." Como tinha razão meu saudoso mestre de geografia humana, Fábio Macedo Soares Guimarães, em 1959! Naquele tempo, o problema era restrito a poucas cidades, somente o Rio e São Paulo tendo de lidar com cifras de 3 milhões a 4 milhões. E agora, que são dezenas as cidades com mais de 1 milhão, seremos capazes de aprender com a experiência?
Não sei se a raiz de tudo é o tamanho, se é justo afirmar que a escala desmesurada é apenas a causa de toda sorte de males, sem nenhum aspecto reparador. Prefiro, ao contrário, dar razão a Henry James, para quem boa parte da vantagem de Londres provinha, pura e simplesmente, da imensidão do lugar. "A grande cidade desdobra seu manto fumarento sobre incontáveis raças e credos." A variedade, o insólito era o que, no século 19, impressionavam os contemporâneos no espetáculo cambiante e nunca monótono de Paris e Londres. Elas continham, segundo se dizia, "a originalidade do universo", essência hoje de Nova York.
Será um acaso sem importância que o essencial na geração de idéias, valores, estilos da música pop à moda, da política à literatura e artes visuais se produza nesses três centros? Ou que Viena e, de modo diverso, Berlim tivessem perdido a condição de capitais da inventividade intelectual quando deixaram de atrair as pessoas de talento de toda a Europa central e do leste? E Buenos Aires, cuja efervescência cultural resiste às piores crises -basta ver a qualidade do seu cinema-, não deve parcela disso a ter sido, há mais de um século, a primeira grande cidade cosmopolita da América Latina?
Desse ponto de vista, o Brasil até que não esbanja diversidade. Existe, sem dúvida, bastante variedade regional na cultura popular brasileira, mas dentro de homogeneidade básica, em termos das três influências que predominam na origem e ao longo dos primeiros séculos. A esse reservatório original aportaram água fresca e de sabor diverso correntes que infelizmente se limitaram no espaço radicando-se no centro-sul do país -e no tempo- interrompendo-se logo após a Segunda Guerra Mundial. Os poucos que chegaram mais tarde -coreanos, chineses, alguns judeus retardatários, bolivianos, peruanos, rio-platenses- começam já a dar contribuição perceptível entre os estudantes classificados no vestibular, na indústria de confecções, no ensino universitário.
Em oposição à desavisada política uniformizadora do Estado Novo, reflexo de insegurança sobre a própria identidade, precisamos de política acolhedora e estimulante da diversidade. Algo se avançou na Constituinte em matéria de dupla nacionalidade, mas falta muito a fazer para superar os resquícios estadonovistas em relação a vistos para estrangeiros, imigrantes temporários ou definitivos, refugiados, à extensão de direitos e oportunidades aos naturalizados. Nessas áreas, é mesquinha nossa orientação, comparada à dos EUA. Não compreendemos que, como na biologia, a diversidade é fundamental para fecundar a criatividade social e cultural.
Uma boa ocasião para valorizar a diversidade, para identificar ações práticas, concretas, a fim de encorajar a variedade cultural, é a que se oferece a São Paulo, ao planejar a festa dos seus 450 anos. No Quarto Centenário, em 1954, eu tinha 17 anos e aproveitei o que pude das exposições no Museu de Arte, então na rua 7 de abril, das conferências, dos ciclos de cinema, da memorável projeção de "Greed", no cine Marrocos. Não me lembro, porém, de que tivesse havido um gesto de apreço pelo aporte de milhares de mulheres e homens anônimos, os quais, embora falando uma Babel de línguas, conseguiram coordenar-se para construir a cidade. É fácil assinalar o que devemos aos nomes conhecidos: os professores europeus da USP, os italianos do Teatro Brasileiro de Comédia e do cinema, Pietro e Lina Bardi, os refugiados excepcionais como Anatol Rosenfeld, Paulo Ronai, Otto Maria Carpeaux. Tem-se às vezes a impressão de que o grau de cosmopolitismo já foi maior, que esses gigantes foram morrendo sem substitutos, ao passo que desapareciam também, por falta de leitores, livrarias estrangeiras, as dezenas de jornais em italiano e outras línguas.
É preciso, portanto, no futuro, estimular a vinda de gente diversa, abrir o país às correntes renovadoras do universo. Ao mesmo tempo, não se deve deixar que morra o que já temos, a diversidade herdada da imigração. Por exemplo, as comunidades de italianos do sul, fiéis às suas festas tradicionais: São Vito, Achiropita, Casaluce, San Gennaro. Falei, em meu último artigo, de um projeto para valorizar a memória de uma dessas comunidades do Brás, da qual eu mesmo sou originário, a dos pugliesi de São Vito. A mesma inspiração poderia impulsionar iniciativas similares, que explorassem as histórias dos hospitais, escolas, associações beneficentes, clubes, criados pelas antigas "colônias": os sírios e libaneses da 25 de Março, os judeus do Bom Retiro, os japoneses da Liberdade, os ucranianos e lituanos do Alto da Mooca.
Atenção igual deveria ser dedicada à migração interna, pois, de 1950 para cá, São Paulo tem sido constantemente enriquecida por levas provenientes sobretudo do Nordeste, mas também do norte do Paraná após a crise do café, do interior em geral. Um projeto cultural desse tipo para "co-memorar", isto é, lembrar juntos, em comunidade, os 450 anos, tem de evitar dois perigos: o do sentimentalismo nostálgico ou heróico pelo passado morto e o estereótipo do pitoresco falso das novelas de TV. Os imigrantes se integraram porque se beneficiaram da mobilidade social do período áureo do crescimento e sofreram o influxo da poderosa força assimiladora da cultura popular brasileira. Infelizmente, ficou de fora a fonte dessa cultura, a massa do povo pobre que já estava aqui, que engrossou e formou a periferia disforme dessa e de outras grandes cidades do país.
Para não ser um mero ajuntamento de pessoas que se segregam e se entredevoram, a cidade tem de ser fiel à sua raiz etimológica, "civitas", a mesma de civilização e de cidadania. Los Angeles, de acordo com Chandler, tinha tanta personalidade como um desses copos de papel que se usam e jogam fora. Outros a descreveram como "72 subúrbios em busca de uma cidade". Queriam dizer que a alma de uma cidade depende de sua capacidade de unir, de criar laços de comunidade entre cidadãos iguais. Esse é o desafio de São Paulo e do Rio, de Belo Horizonte e Recife, de Porto Alegre e Salvador: conciliar a abertura para o universo de fora com a integração do mundo de dentro, derrubar pela solidariedade os muros que separam as subculturas geradas pela desigualdade e a miséria.


Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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