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São Paulo, domingo, 22 de junho de 2003

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

O vôo do besouro

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

A reversão do ciclo expansivo americano dos anos 90 foi produzida sobretudo por uma queda acentuada do investimento privado, altamente concentrado nos setores de informática e de telecomunicações. As taxas de variação do gasto em investimento não-residencial tornaram-se rapidamente negativas já no quarto trimestre de 2000. Em 2001, a queda foi ainda mais pronunciada, algo em torno de 10%.
Um mergulho dessa profundidade levou a uma contração dos lucros corporativos num curto intervalo de tempo. Isso afetou particularmente as empresas da Nasdaq, cujo índice de preços iniciou uma derrocada, saindo de mais de 5.000 pontos para os atuais 1.600. Foi inevitável a contaminação do Dow Jones.
O encolhimento nos lucros esperados e a perda de riqueza nos mercados de ações afetaram negativamente o gasto empresarial. No caso das famílias, o declínio do dispêndio não ocorreu porque a tempestiva queda dos juros sustentou uma febre especulativa no mercado de imóveis residenciais e prolongou os efeitos positivos do "efeito riqueza" sobre o gasto dos consumidores.
A economista Jane D'Arista, do Financial Markets Center, analisa regularmente as informações contidas no "Flow of Funds Accounts". No primeiro trimestre de 2003, o estoque total de endividamento do setor não-financeiro nos Estados Unidos chegou a US$ 21 trilhões, ou seja, mais do que o dobro do PIB. Essa cifra inclui, além do endividamento privado -empresas e famílias-, o débito público total (federal, estadual e municipal) e o passivo financeiro das agências públicas encarregadas de bancar o financiamento da aquisição da casa própria. Essas agências vêm liderando as emissões de dívida nova e absorvendo grande parte do dinheiro estrangeiro que corre para os Estados Unidos. A dívida das agências é garantida pelo governo americano.
O relatório mostra que a dívida total cresceu seis vezes mais do que o PIB, em termos anualizados, com uma participação crescente das agências e do governo federal. As grandes corporações trataram de reduzir seu ritmo de endividamento -apenas 3% anualizados no primeiro trimestre de 2003 contra 5,5% em 2001-, buscando a rápida "desalavancagem" para estabilizar a relação entre a dívida e o patrimônio líquido.
As famílias, no entanto, não se atemorizaram com os ruídos da recessão e assumiram novos compromissos ou rolaram os antigos a uma velocidade ainda elevada (10% no quarto trimestre de 2002, em termos anualizados, contra 8,6% em 2001). Na verdade, as famílias mantiveram o ritmo do auge de 2000. Assim, a dívida das famílias saltou de 100% para 103% da renda disponível. Entre o segundo trimestre de 2002 e o primeiro de 2003, o investimento líquido das famílias -a diferença entre novas aquisições de ativos e dívida nova- foi negativo em US$ 209,8 bilhões, ou seja, 2,7% da renda disponível.
A relação entre a dívida e o patrimônio líquido das famílias também se deteriorou. Foram fortes as perdas (US$ 2,4 trilhões) nos fundos mútuos, nos fundos de pensão e no valor das carteiras de ações possuídas individualmente. Isso foi parcialmente compensado pelo aumento (US$ 1 trilhão) do valor dos imóveis residenciais, cujo mercado continua aquecido graças à ação das agências públicas e à queda nas taxas de juros promovidas pelo Fed. Entre o segundo trimestre de 2002 e o primeiro de 2003, a diminuição do patrimônio líquido das famílias chegou a US$ 1,9 trilhão. Apesar dessa perda de riqueza, a poupança familiar caiu ainda mais, de 3,8% para 0,4% da renda disponível.
As famílias americanas estão, portanto, empreendendo uma "fuga para a frente", que, provavelmente, não será sustentável na ausência de uma recuperação razoavelmente forte do investimento corporativo e do gasto público. O obstáculo maior à recuperação do investimento é a existência de margens elevadas de capacidade ociosa na indústria manufatureira, hoje em torno de 30%. A ociosidade é ainda maior -35%- na indústria de semicondutores e componentes eletrônicos para se tornar alarmante -50%- na produção de equipamentos de telecomunicações.
A bolha imobiliária já dá claros sinais de arrefecimento, e os estudos recentes mostram que o efeito riqueza decorrente de uma queda de preços da casa própria é significativo.
No caso americano, é improvável que a balança comercial e o consumo das famílias venham a desempenhar, nos próximos meses, um papel relevante na determinação do crescimento.
A pretexto de estimular a economia americana, George W. Bush baixou um pacote fiscal que levará os ricos americanos ao paraíso. Já os pobres e remediados não sabem se as medidas enviadas ao Congresso pelo presidente terão a virtude de aliviar as aflições geradas pelo medo da recessão e do desemprego.
O diretor-executivo do Centro de Estudos sobre o Orçamento e Prioridades Públicas, Robert Greenstein, afirma que o pacote de Bush é, a curto prazo, ineficaz para reanimar a demanda dos consumidores e, no longo prazo, oneroso porque deteriora a situação estrutural do Orçamento do governo americano. Nos próximos dez anos, o déficit orçamentário vai aumentar US$ 700 bilhões.
Já o estímulo de Bush, calculado em US$ 674 bilhões, está distribuído de tal maneira que apenas US$ 102 bilhões produzirão efeitos em 2003. "É o mais ineficiente estímulo proposto em reversões cíclicas da economia americana. Além disso, uma parte substancial da redução de impostos simplesmente não será gasta, mas, sim, poupada. Os maiores beneficiários, os ricos, têm uma inclinação menor a gastar a renda adicional que recebem. Preferem poupar."
Stephen Roach, o economista do Morgan Stanley, não poupa críticas à estratégia de reativação dos republicanos. Para ele, tanto Bush como Greesnpan estão à procura de uma fórmula para reanimar as Bolsas e, assim, reproduzir os efeitos decorrentes da valorização das ações sobre o gasto das famílias e das empresas. Não vai funcionar, diz Roach: as famílias estão muito endividadas e as empresas, que estão com excesso de capacidade, não vão investir.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor titular de Economia da Unicamp. Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).


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