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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
O vôo do besouro
LUIZ GONZAGA BELLUZZO
A reversão do ciclo expansivo americano dos anos 90 foi
produzida sobretudo por uma
queda acentuada do investimento
privado, altamente concentrado
nos setores de informática e de telecomunicações. As taxas de variação do gasto em investimento
não-residencial tornaram-se rapidamente negativas já no quarto
trimestre de 2000. Em 2001, a queda foi ainda mais pronunciada,
algo em torno de 10%.
Um mergulho dessa profundidade levou a uma contração dos lucros corporativos num curto intervalo de tempo. Isso afetou particularmente as empresas da Nasdaq,
cujo índice de preços iniciou uma
derrocada, saindo de mais de
5.000 pontos para os atuais 1.600.
Foi inevitável a contaminação do
Dow Jones.
O encolhimento nos lucros esperados e a perda de riqueza nos
mercados de ações afetaram negativamente o gasto empresarial. No
caso das famílias, o declínio do
dispêndio não ocorreu porque a
tempestiva queda dos juros sustentou uma febre especulativa no
mercado de imóveis residenciais e
prolongou os efeitos positivos do
"efeito riqueza" sobre o gasto dos
consumidores.
A economista Jane D'Arista, do
Financial Markets Center, analisa
regularmente as informações contidas no "Flow of Funds Accounts". No primeiro trimestre de
2003, o estoque total de endividamento do setor não-financeiro nos
Estados Unidos chegou a US$ 21
trilhões, ou seja, mais do que o dobro do PIB. Essa cifra inclui, além
do endividamento privado -empresas e famílias-, o débito público total (federal, estadual e municipal) e o passivo financeiro das
agências públicas encarregadas de
bancar o financiamento da aquisição da casa própria. Essas agências vêm liderando as emissões de
dívida nova e absorvendo grande
parte do dinheiro estrangeiro que
corre para os Estados Unidos. A
dívida das agências é garantida
pelo governo americano.
O relatório mostra que a dívida
total cresceu seis vezes mais do que
o PIB, em termos anualizados,
com uma participação crescente
das agências e do governo federal.
As grandes corporações trataram
de reduzir seu ritmo de endividamento -apenas 3% anualizados
no primeiro trimestre de 2003 contra 5,5% em 2001-, buscando a
rápida "desalavancagem" para
estabilizar a relação entre a dívida
e o patrimônio líquido.
As famílias, no entanto, não se
atemorizaram com os ruídos da
recessão e assumiram novos compromissos ou rolaram os antigos a
uma velocidade ainda elevada
(10% no quarto trimestre de 2002,
em termos anualizados, contra
8,6% em 2001). Na verdade, as famílias mantiveram o ritmo do auge de 2000. Assim, a dívida das famílias saltou de 100% para 103%
da renda disponível. Entre o segundo trimestre de 2002 e o primeiro de 2003, o investimento líquido das famílias -a diferença
entre novas aquisições de ativos e
dívida nova- foi negativo em
US$ 209,8 bilhões, ou seja, 2,7% da
renda disponível.
A relação entre a dívida e o patrimônio líquido das famílias
também se deteriorou. Foram fortes as perdas (US$ 2,4 trilhões) nos
fundos mútuos, nos fundos de
pensão e no valor das carteiras de
ações possuídas individualmente.
Isso foi parcialmente compensado
pelo aumento (US$ 1 trilhão) do
valor dos imóveis residenciais, cujo mercado continua aquecido
graças à ação das agências públicas e à queda nas taxas de juros
promovidas pelo Fed. Entre o segundo trimestre de 2002 e o primeiro de 2003, a diminuição do
patrimônio líquido das famílias
chegou a US$ 1,9 trilhão. Apesar
dessa perda de riqueza, a poupança familiar caiu ainda mais, de
3,8% para 0,4% da renda disponível.
As famílias americanas estão,
portanto, empreendendo uma
"fuga para a frente", que, provavelmente, não será sustentável na
ausência de uma recuperação razoavelmente forte do investimento
corporativo e do gasto público. O
obstáculo maior à recuperação do
investimento é a existência de
margens elevadas de capacidade
ociosa na indústria manufatureira, hoje em torno de 30%. A ociosidade é ainda maior -35%- na
indústria de semicondutores e
componentes eletrônicos para se
tornar alarmante -50%- na
produção de equipamentos de telecomunicações.
A bolha imobiliária já dá claros
sinais de arrefecimento, e os estudos recentes mostram que o efeito
riqueza decorrente de uma queda
de preços da casa própria é significativo.
No caso americano, é improvável que a balança comercial e o
consumo das famílias venham a
desempenhar, nos próximos meses, um papel relevante na determinação do crescimento.
A pretexto de estimular a economia americana, George W. Bush
baixou um pacote fiscal que levará
os ricos americanos ao paraíso. Já
os pobres e remediados não sabem
se as medidas enviadas ao Congresso pelo presidente terão a virtude de aliviar as aflições geradas
pelo medo da recessão e do desemprego.
O diretor-executivo do Centro de
Estudos sobre o Orçamento e Prioridades Públicas, Robert Greenstein, afirma que o pacote de Bush
é, a curto prazo, ineficaz para reanimar a demanda dos consumidores e, no longo prazo, oneroso
porque deteriora a situação estrutural do Orçamento do governo
americano. Nos próximos dez
anos, o déficit orçamentário vai
aumentar US$ 700 bilhões.
Já o estímulo de Bush, calculado
em US$ 674 bilhões, está distribuído de tal maneira que apenas US$
102 bilhões produzirão efeitos em
2003. "É o mais ineficiente estímulo proposto em reversões cíclicas
da economia americana. Além
disso, uma parte substancial da
redução de impostos simplesmente não será gasta, mas, sim, poupada. Os maiores beneficiários, os ricos, têm uma inclinação menor a
gastar a renda adicional que recebem. Preferem poupar."
Stephen Roach, o economista do
Morgan Stanley, não poupa críticas à estratégia de reativação dos
republicanos. Para ele, tanto Bush
como Greesnpan estão à procura
de uma fórmula para reanimar as
Bolsas e, assim, reproduzir os efeitos decorrentes da valorização das
ações sobre o gasto das famílias e
das empresas. Não vai funcionar,
diz Roach: as famílias estão muito
endividadas e as empresas, que estão com excesso de capacidade,
não vão investir.
Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor
titular de Economia da Unicamp. Foi
chefe da Secretaria Especial de Assuntos
Econômicos do Ministério da Fazenda
(governo Sarney) e secretário de Ciência
e Tecnologia do Estado de São Paulo
(governo Quércia).
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