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OPINIÃO ECONÔMICA
A moral ou a esquerda inglesa
RUBENS RICUPERO
Não era mais possível ao
Brasil "resistir à pressão das
idéias da época em que vivemos",
dizia o visconde de Uruguai para
tentar convencer por que razão o
governo imperial tinha sido "único e exclusivamente responsável"
pela decisão de pôr fim ao tráfico
de escravos com a Lei Eusébio de
Queiroz, de 1850. Outros, menos
caridosos, observariam que aquilo a que o país não podia resistir
não eram propriamente as idéias,
mas a extensão a portos brasileiros e águas interiores das operações do esquadrão naval britânico e a captura de 90 navios nacionais entre 1848 e 1852, na vigência
do Aberdeen Act.
Lembra Leslie Bethell, que, ao
provocar grave crise política, essa
extensão conduziu diretamente à
aprovação da lei (em sessão secreta, antecipando os atuais maus
costumes do Senado) e à sua vigorosa aplicação. Confirma-o, com
sua habitual lucidez, Joaquim
Nabuco, ao comentar que "é querer iludir-nos a nós mesmos por
uma ficção de patriotismo dizer-se que sem essa atitude da Inglaterra no mar o tráfico teria sido
parado repentinamente em 1850,
como o foi".
Quando eu ensinava história
diplomática nos tempos do regime militar, impressionavam-me
as analogias entre esse distante
episódio e o que então se passava
ao meu redor. Por mais de 30
anos após a Independência, o
conflito com o Reino Unido sobre
o tráfico foi o mais perigoso problema internacional do Brasil,
criando o ambiente que primeiro
arruinaria a influência política
inglesa para finalmente levar ao
rompimento das relações. Da
mesma forma, a interferência de
Carter na questão dos direitos humanos motivou Geisel a denunciar os acordos militares, azedando as relações com os Estados
Unidos, que nunca mais voltariam a ser como dantes.
Havia ao menos três semelhanças sugestivas entre os dois litígios. Primeiro, em ambos encontrávamo-nos em frontal linha de
colisão com a potência hegemônica da época. Segundo, a substância do conflito tinha a ver com valores morais e humanos, embora
houvesse, em um e outro caso,
muito motivo duvidoso e impuro
de ordem econômica ou política
no intervencionismo estrangeiro.
Terceiro, sendo indefensáveis
nossas práticas, tivemos de recorrer invariavelmente à linha de
defesa da soberania violada, que
se revelou afinal ineficaz. Acabamos por entregar os pontos, embora protestando sempre que o
fazíamos por livre e espontânea
vontade.
Tudo isso voltou-me à memória
porque meu artigo "O aço da discórdia" inspirou ao leitor Gustavo Sénéchal crítica inteligente e
particularmente bem escrita, que
reabre a discussão sobre o chamado dumping social e ambiental.
Alega o leitor que o recurso ao
trabalho infantil (poderia ter
acrescentado escravo em certos
casos) e a depredação do cerrado
para fabricar carvão vegetal concorreram para assegurar a competitividade do aço brasileiro.
"Carbonizam-se vidas e dizima-se a natureza (...) em nome do
progresso e do desenvolvimento."
E conclui: "Mesmo que por vias
transversas e injustas, creio que
seja realmente melhor que o Brasil venda menos aço para os EUA
(...), ainda que isso nos custe muitíssimo, no curto e médio prazos...".
Respondi não saber se é esse efetivamente o caso do aço, mas que
concordo com a essência do argumento: nem o Brasil nem outro
país qualquer devem basear a
competitividade na exploração
humana ou ambiental. O passo
seguinte, contudo, é indagar se
aceitamos ou não a imposição de
sanções comerciais a fim de promover padrões trabalhistas e ambientais toleráveis. Gustavo Sénéchal ressalta não ser, a priori, a
favor da negociação de cláusulas
trabalhistas ou ambientais em foros como a OMC, por ter consciência de que elas poderão ser
aplicadas para restringir ainda
mais as possibilidades de inserção
internacional de países como o
Brasil. Prefere como eu e, imagino, todo o mundo, que seja o governo brasileiro a coibir as práticas condenáveis. O problema é
quando o governo não o faz em
tempo, conforme ocorreu com o
tráfico negreiro ou a tortura. Nesse caso, cedo ou tarde, alguém o
fará por e contra nós. Só nos restará, então, a escolha inconfortável entre dois males, um que perpetua atrocidades monstruosas e
outro que, embora injusto, apressa-lhes a liquidação. Trata-se
sempre de males, mas serão acaso
da mesma hierarquia, merecedores de igual repúdio?
Por que, diante de tamanha
evidência, parecemos condenados a reencenar incessantemente
essa cumplicidade pusilânime perante as expressões mais hediondas da vilania e do barbarismo? É
impossível não fazer tal pergunta
ao ler o magnífico artigo de frei
Betto "Trabalho escravo no Brasil" (Folha, 18/7/01). Nele se diz
que, segundo o Ministério do Trabalho, existiriam três trabalhadores escravizados para cada resgatado. Não obstante estaria ocorrendo revoltante covardia diante
do dever de fiscalizar os escravocratas poderosos com rigor implacável. Espero que o libelo mereça
ou esclarecimentos tranquilizadores, se não foi exato, ou a vigorosa intervenção do Ministério
Público, já que a esquadra inglesa
de Lord Aberdeen não está mais
disponível.
Nosso querido e saudoso José
Guilherme Merquior, em boa hora evocado pelo caderno Mais!,
aplicaria a esse exemplo de ignomínia o poema "O navio negreiro", do qual deixou-nos exegese
luminosa. Depois de alcançar o
ponto mais alto da musicalidade
da linguagem, ao descrever o
"Auriverde pendão de minha terra, / Que a brisa do Brasil beija e
balança," o poeta não recuava
em acrescentar: "Antes te houvessem roto na batalha, / Que servires, a um povo de mortalha...".
Castro Alves não hesitava em dizer o que outros não se atreveriam a pensar: preferia a pátria
derrotada em guerra, a esquadra
inglesa, portanto, a acobertar
com o patriotismo crimes contra
a humanidade, em tais circunstâncias "o último refúgio dos canalhas", segundo o dr. Samuel
Johnson. É triste que a capacidade de indignação moral do poeta
continue tão atual no Brasil de
hoje como era em 1868.
Rubens Ricupero, 64, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail - rubensricupero@hotmail.com
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