São Paulo, domingo, 22 de julho de 2001

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

A trágica agonia argentina

LUCIANO COUTINHO

Tem sido extraordinária e notável a resistência da Argentina -tanto da sociedade como do governo e do sistema político- a entregar os pontos. Depois de dias sumamente críticos -em que não veio uma temida "corrida bancária"-, a equipe econômica argentina está prestes a concluir operações fiscais e financeiras emergenciais para ganhar seis meses e evitar o "default" imediato.
No plano fiscal, foram concretizadas operações de antecipação de receita tributária por parte de grandes empresas privatizadas e bancos (relativas a exercícios futuros) para reforçar o Tesouro federal e o fundo de apoio às Províncias. Além disso, discute-se como cortar gastos. O governo propôs cortes muito duros sobre as aposentadorias e sobre os salários do setor público para equilibrar o déficit fiscal, mês a mês, no segundo semestre (cerca de US$ 1,5 bilhão). De outro lado, a própria Aliança que sustenta o governo De la Rúa (coalizão UCR-Frepaso) contrapropôs uma alternativa de aumentos seletivos de impostos e contribuições com o mesmo objetivo de zerar o déficit na segunda metade do ano. O Congresso deverá escolher o "mix" de medidas e espera-se que a aprovação alivie, em parte, a tensão.
Em outro front, o vice-ministro Daniel Marx (que tem sido o grande criador das soluções financeiras desde o período Machinea) negocia com grandes bancos e fundos de pensão um "mini-swap" da dívida doméstica de curto prazo, trocando as Letes vincendas nos próximos seis meses por títulos de um ano com juros de 12% ao ano. Para esse "swap", o governo pede ao mercado um "esforço patriótico", já que a taxa de juros oferecida está aquém daquelas obtidas recentemente no "mega-swap" de boa parte do principal da dívida externa. A operação deve ser sustentada por um punhado de grandes bancos, cujo alto grau de comprometimento com a Argentina os leva a preferir essa solução (assinala-se, nesse caso, a feia defecção do J.P. Morgan).
Se esse conjunto de medidas heróicas vingar, como parece provável, a Argentina terá novamente pago caro para comprar pouco tempo. Sem embargo, os "mercados" permanecem justificadamente céticos quanto à capacidade da economia de retomar o crescimento visto que as medidas recentes são evidentemente recessionistas e apenas empurraram os problemas para a frente.
É relevante sublinhar que esse episódio da crise argentina veio de "fora para dentro". Enquanto a sociedade, o governo, os bancos e (ainda que com contradições) o sistema político estão claramente aferrados à defesa do atual regime cambial (dado o terror que inspira as sequelas de sua ruptura), os credores estrangeiros resolveram, literalmente, rifar a Argentina.
Com efeito, nas últimas semanas, boletins de vários grandes bancos americanos recomendaram abertamente a fuga dos papéis argentinos, negando-se a conceder novos créditos. A dificuldade do país em gerar divisas para servir sua dívida é patente. A rolagem do principal do estoque da dívida externa neste segundo semestre e em 2002 foi, em parte, efetuada pelo "mega-swap", e o financiamento do déficit corrente está precariamente assegurado em 2001 pelo pacote de "blindagem" fechado no início deste ano com a ajuda do FMI (de US$ 40 bilhões). Mas não há horizonte viável para o financiamento das amortizações residuais e do déficit corrente futuro (estimado, no mínimo, em US$ 10 bilhões por ano). O FMI, sob a linha dura inspirada pelo governo Bush, não parece disposto a armar novas operações de suporte na escala necessária. Assim, os "mercados" impiedosamente já decretaram -por inanição financeira- o "default" argentino, ainda que o país, seu governo e sociedade não o desejem. É uma questão de tempo. As reservas vêm sendo minadas, semana a semana, situando-se já abaixo de US$ 20 bilhões. Num cenário de "default", a escassez de dólares exercerá pressão insustentável sobre o sistema de "currency board", levando a economia ou a uma dolarização com tremenda deflação e recessão ou a uma desvalorização desorganizada, com pesadíssimas perdas patrimoniais para o setor privado e para a sociedade.
Os efeitos sobre o Brasil já estão se manifestando nos juros mais altos, no câmbio descontrolado e nas pressões inflacionárias. É nisso que dá depender (Argentina e Brasil) -tanto e estruturalmente- do mercado mundial de capitais.


Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).


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