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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
A trágica agonia argentina
LUCIANO COUTINHO
Tem sido extraordinária e
notável a resistência da Argentina -tanto da sociedade como do governo e do sistema político- a entregar os pontos. Depois de dias sumamente críticos
-em que não veio uma temida
"corrida bancária"-, a equipe
econômica argentina está prestes
a concluir operações fiscais e financeiras emergenciais para ganhar seis meses e evitar o "default" imediato.
No plano fiscal, foram concretizadas operações de antecipação
de receita tributária por parte de
grandes empresas privatizadas e
bancos (relativas a exercícios futuros) para reforçar o Tesouro federal e o fundo de apoio às Províncias. Além disso, discute-se como cortar gastos. O governo propôs cortes muito duros sobre as
aposentadorias e sobre os salários
do setor público para equilibrar o
déficit fiscal, mês a mês, no segundo semestre (cerca de US$ 1,5 bilhão). De outro lado, a própria
Aliança que sustenta o governo
De la Rúa (coalizão UCR-Frepaso) contrapropôs uma alternativa
de aumentos seletivos de impostos e contribuições com o mesmo
objetivo de zerar o déficit na segunda metade do ano. O Congresso deverá escolher o "mix" de
medidas e espera-se que a aprovação alivie, em parte, a tensão.
Em outro front, o vice-ministro
Daniel Marx (que tem sido o
grande criador das soluções financeiras desde o período Machinea) negocia com grandes bancos
e fundos de pensão um "mini-swap" da dívida doméstica de
curto prazo, trocando as Letes
vincendas nos próximos seis meses por títulos de um ano com juros de 12% ao ano. Para esse
"swap", o governo pede ao mercado um "esforço patriótico", já que
a taxa de juros oferecida está
aquém daquelas obtidas recentemente no "mega-swap" de boa
parte do principal da dívida externa. A operação deve ser sustentada por um punhado de grandes
bancos, cujo alto grau de comprometimento com a Argentina os leva a preferir essa solução (assinala-se, nesse caso, a feia defecção
do J.P. Morgan).
Se esse conjunto de medidas heróicas vingar, como parece provável, a Argentina terá novamente
pago caro para comprar pouco
tempo. Sem embargo, os "mercados" permanecem justificadamente céticos quanto à capacidade da economia de retomar o
crescimento visto que as medidas
recentes são evidentemente recessionistas e apenas empurraram
os problemas para a frente.
É relevante sublinhar que esse
episódio da crise argentina veio
de "fora para dentro". Enquanto
a sociedade, o governo, os bancos
e (ainda que com contradições) o
sistema político estão claramente
aferrados à defesa do atual regime cambial (dado o terror que
inspira as sequelas de sua ruptura), os credores estrangeiros resolveram, literalmente, rifar a Argentina.
Com efeito, nas últimas semanas, boletins de vários grandes
bancos americanos recomendaram abertamente a fuga dos papéis argentinos, negando-se a
conceder novos créditos. A dificuldade do país em gerar divisas
para servir sua dívida é patente.
A rolagem do principal do estoque da dívida externa neste segundo semestre e em 2002 foi, em
parte, efetuada pelo "mega-swap", e o financiamento do déficit corrente está precariamente
assegurado em 2001 pelo pacote
de "blindagem" fechado no início
deste ano com a ajuda do FMI (de
US$ 40 bilhões). Mas não há horizonte viável para o financiamento das amortizações residuais e do
déficit corrente futuro (estimado,
no mínimo, em US$ 10 bilhões por
ano). O FMI, sob a linha dura inspirada pelo governo Bush, não
parece disposto a armar novas
operações de suporte na escala
necessária. Assim, os "mercados"
impiedosamente já decretaram
-por inanição financeira- o
"default" argentino, ainda que o
país, seu governo e sociedade não
o desejem. É uma questão de tempo. As reservas vêm sendo minadas, semana a semana, situando-se já abaixo de US$ 20 bilhões.
Num cenário de "default", a escassez de dólares exercerá pressão
insustentável sobre o sistema de
"currency board", levando a economia ou a uma dolarização com
tremenda deflação e recessão ou a
uma desvalorização desorganizada, com pesadíssimas perdas patrimoniais para o setor privado e
para a sociedade.
Os efeitos sobre o Brasil já estão
se manifestando nos juros mais
altos, no câmbio descontrolado e
nas pressões inflacionárias. É nisso que dá depender (Argentina e
Brasil) -tanto e estruturalmente- do mercado mundial de capitais.
Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e
Tecnologia (1985-88).
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