|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LUÍS NASSIF
As serestas do interior
]
Recebo artigo de amigos de
São João da Boa Vista com
um histórico das serenatas locais
e me conferindo o honroso título
de "pioneiro". Confesso que a palavra "pioneiro" me deixou um
pouco assustado, pois parecia
que tinha sido outro dia.
A bem da verdade, quando fui
estudar em São João, a partir de
1966, já havia um grupo bom de
serestas, o Barata, o Explosivo e o
Eremílio imitando o Trio Los
Panchos, o Silas dominando o repertório da bossa nova, entre outros, aos quais me agreguei
quando passei a frequentar a casa da dona Elide. A inesquecível
dona Elide recebia todos os rapazes de São João interessados na
sua hospitalidade, no clima musical e nas suas filhas, com uma
das quais me casei, depois de
romper a timidez com uma bossa
nova do mineiro Pacífico Mascarenhas ("Mais ou menos foi assim / vou contar como é que foi /
começou de brincadeira / de uma
insinuação"), compositor que teria sido da dimensão de um Roberto Menescal caso morasse no
Rio de Janeiro.
Já as serestas em Poços tiveram
várias fases. Lá por 1963, eu com
12 para 13 anos, tocava cavaquinho no conjunto Fascinação,
uma mistureba fenomenal que
tinha o Fontela no violino, Barbosinha, Tomás e Amaral nos
violões, o Adnei no bongô e o Arlei no pistom e, como cantora, a
filha do compadre Zé Tomé, que
apresentava o programa "Alvorada Sertaneja" na rádio Cultura. Certa feita fui a São Paulo,
uma prima me levou à Casa Bevilacqua e pedi partituras para
aquela formação musical. O vendedor me ofereceu partituras de
mambo.
Nesse período, em Poços, o repertório era das peças clássicas
de serestas (Cândido das Neves,
Lamartine), muito Lucho Gatica,
baladas americanas do trio Peter, Paul e Mary e alguma coisa
de bossa nova. Tocávamos "O
Canário" ("Certa vez / um lindo
canário eu vi") com o Fontela fazendo uns arabescos no violino,
imitando canário e enlouquecendo literalmente todos os cachorros da região.
Em 1965 passei seis meses estudando eletrônica em Santa Rita
do Sapucaí, indo morar na república WC. Lá convivi com o conjunto de baile da escola, com um
repertório do que de mais fino
produzia a bossa nova, com os
violões de Salário Mínimo de São
José dos Campos, do Tota de Poços, com a voz do Dudu Pelegrinelli, também de Poços, que fazia
um oitavado igual ao do dos Cariocas, e do Marcão, de Ouro Preto, "crooner" de primeiríssima. O
repertório era de Tom, Carlos Lira, os irmãos Valle, então gozando de enorme prestígio.
Na volta, nossa turma de Poços
inovou o repertório local a partir
de 1966, em umas férias particularmente agradáveis, em que as
primeiras vítimas dos nossos sons
de iniciantes foram as filhas do
dr. Teóphilo Andrade, de São
João, e do professor Antônio
Cândido.
Das serestas conhecíamos o repertório, trazido pelos velhos músicos de Poços reunidos na casa
de meu tio Léo, e as lendas do Rio
de Janeiro dos anos 40, que rezavam que quem fosse apanhado
com violão na rua seria preso.
Motivo pelo qual toda seresta
nossa começava com uma marchinha súplice: "Acorda menina,
venha escutar / a serenata que
vai pro ar / se gostar dela venha à
janela / que é pro violão continuar / mas se meu canto / não lhe
agrada / de modo algum chame o
guarda / pois se aqui não tenho
inspiração / menos ainda terei na
prisão".
De modo geral, as donzelas
eram bastante compreensivas,
bonitas e prendadas, pois, além
de não chamar o guarda, nos recebiam com quitutes variados. A
Mônica, também nossa cantora,
servia vinho. A Zaza, da fazenda
Chiqueirão, um bolo de chocolate inesquecível. A Sarinha, licores
que faziam muito bem para a
vista. A Soninha, Varuna e amigas, bolos e café. Na minha casa e
na do meu tio, primas e irmãs
ofereciam café. Só não valia não
servir nada.
Mas o que importava era o repertório. Àquela altura, 1965 em
diante, Tom Jobim, Carlos Lira e
Vinicius ainda dominavam, ao
lado do imenso Baden Powell.
Mas Chico Buarque, Edu Lobo e
Vandré começavam a se impor.
No Bachianinha, ponto boêmio,
a Iara, dona, e o Viviani, pianista
que mora em Ribeirão Preto e se
tornou compositor de choros modernos de primeiríssima, garantiam a permanência dos clássicos
do samba canção.
Nem sei se o interior inteiro
ainda cultiva as serestas. Nas pequenas e médias cidades sempre
aparecerão jovens apaixonados,
com seus violões de iniciantes,
sob a lua do interior, mantendo a
tradição brasileiríssima das serestas e arriscando-se, daqui a algumas décadas, a também serem
tratados como pioneiros.
Internet: www.dinheirovivo.com.br
E-mail - lnassif@uol.com.br
Texto Anterior: Tendências internacionais: Gênova separa código de conduta da violência Próximo Texto: A batalha de Gênova: Burocracia e mídia dominam encontros Índice
|