São Paulo, domingo, 22 de julho de 2001

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LUÍS NASSIF

As serestas do interior

] Recebo artigo de amigos de São João da Boa Vista com um histórico das serenatas locais e me conferindo o honroso título de "pioneiro". Confesso que a palavra "pioneiro" me deixou um pouco assustado, pois parecia que tinha sido outro dia.
A bem da verdade, quando fui estudar em São João, a partir de 1966, já havia um grupo bom de serestas, o Barata, o Explosivo e o Eremílio imitando o Trio Los Panchos, o Silas dominando o repertório da bossa nova, entre outros, aos quais me agreguei quando passei a frequentar a casa da dona Elide. A inesquecível dona Elide recebia todos os rapazes de São João interessados na sua hospitalidade, no clima musical e nas suas filhas, com uma das quais me casei, depois de romper a timidez com uma bossa nova do mineiro Pacífico Mascarenhas ("Mais ou menos foi assim / vou contar como é que foi / começou de brincadeira / de uma insinuação"), compositor que teria sido da dimensão de um Roberto Menescal caso morasse no Rio de Janeiro.
Já as serestas em Poços tiveram várias fases. Lá por 1963, eu com 12 para 13 anos, tocava cavaquinho no conjunto Fascinação, uma mistureba fenomenal que tinha o Fontela no violino, Barbosinha, Tomás e Amaral nos violões, o Adnei no bongô e o Arlei no pistom e, como cantora, a filha do compadre Zé Tomé, que apresentava o programa "Alvorada Sertaneja" na rádio Cultura. Certa feita fui a São Paulo, uma prima me levou à Casa Bevilacqua e pedi partituras para aquela formação musical. O vendedor me ofereceu partituras de mambo.
Nesse período, em Poços, o repertório era das peças clássicas de serestas (Cândido das Neves, Lamartine), muito Lucho Gatica, baladas americanas do trio Peter, Paul e Mary e alguma coisa de bossa nova. Tocávamos "O Canário" ("Certa vez / um lindo canário eu vi") com o Fontela fazendo uns arabescos no violino, imitando canário e enlouquecendo literalmente todos os cachorros da região.
Em 1965 passei seis meses estudando eletrônica em Santa Rita do Sapucaí, indo morar na república WC. Lá convivi com o conjunto de baile da escola, com um repertório do que de mais fino produzia a bossa nova, com os violões de Salário Mínimo de São José dos Campos, do Tota de Poços, com a voz do Dudu Pelegrinelli, também de Poços, que fazia um oitavado igual ao do dos Cariocas, e do Marcão, de Ouro Preto, "crooner" de primeiríssima. O repertório era de Tom, Carlos Lira, os irmãos Valle, então gozando de enorme prestígio.
Na volta, nossa turma de Poços inovou o repertório local a partir de 1966, em umas férias particularmente agradáveis, em que as primeiras vítimas dos nossos sons de iniciantes foram as filhas do dr. Teóphilo Andrade, de São João, e do professor Antônio Cândido.
Das serestas conhecíamos o repertório, trazido pelos velhos músicos de Poços reunidos na casa de meu tio Léo, e as lendas do Rio de Janeiro dos anos 40, que rezavam que quem fosse apanhado com violão na rua seria preso. Motivo pelo qual toda seresta nossa começava com uma marchinha súplice: "Acorda menina, venha escutar / a serenata que vai pro ar / se gostar dela venha à janela / que é pro violão continuar / mas se meu canto / não lhe agrada / de modo algum chame o guarda / pois se aqui não tenho inspiração / menos ainda terei na prisão".
De modo geral, as donzelas eram bastante compreensivas, bonitas e prendadas, pois, além de não chamar o guarda, nos recebiam com quitutes variados. A Mônica, também nossa cantora, servia vinho. A Zaza, da fazenda Chiqueirão, um bolo de chocolate inesquecível. A Sarinha, licores que faziam muito bem para a vista. A Soninha, Varuna e amigas, bolos e café. Na minha casa e na do meu tio, primas e irmãs ofereciam café. Só não valia não servir nada.
Mas o que importava era o repertório. Àquela altura, 1965 em diante, Tom Jobim, Carlos Lira e Vinicius ainda dominavam, ao lado do imenso Baden Powell. Mas Chico Buarque, Edu Lobo e Vandré começavam a se impor. No Bachianinha, ponto boêmio, a Iara, dona, e o Viviani, pianista que mora em Ribeirão Preto e se tornou compositor de choros modernos de primeiríssima, garantiam a permanência dos clássicos do samba canção.
Nem sei se o interior inteiro ainda cultiva as serestas. Nas pequenas e médias cidades sempre aparecerão jovens apaixonados, com seus violões de iniciantes, sob a lua do interior, mantendo a tradição brasileiríssima das serestas e arriscando-se, daqui a algumas décadas, a também serem tratados como pioneiros.


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