São Paulo, segunda-feira, 22 de julho de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Economia no fio da navalha

MARCELO TRINDADE MITERHOF

"Se queres transformar um papagaio em um culto economista, ensine a ele a lei da oferta e da demanda". Ouvi esse ditado de um professor na faculdade. O objetivo era contestar a noção de que a inflação é um fenômeno puramente monetário, provocado por uma política monetária frouxa ou por uma farra fiscal. Em uma visão alternativa, a inflação teria causas mais gerais, seria fruto da existência de conflitos distributivos persistentes.
É certo que, dada a importância da moeda em economias com extrema divisão do trabalho, no limite é possível a quem a emite controlar sua oferta de forma que as mudanças nos preços relativos não sejam acompanhadas por uma elevação no nível geral de preços. O risco seria tornar a demanda por moeda tão alta em relação à oferta que ocorreriam crises deflacionárias e depressivas.
Isso mostra que ter economistas "comprometidos com a estabilidade" não é suficiente para que a política econômica seja adequada. É preciso também ter políticos responsáveis e sensíveis. Com base nessa premissa e na lei da oferta e da demanda, tentarei analisar o problema da dívida pública interna.
A estabilização monetária foi há oito anos obtida com base em uma abertura comercial ampla e câmbio sobrevalorizado. À demanda que crescia por conta da eliminação da inflação inercial foi disponibilizada uma oferta virtualmente infinita de importados. Mas a aplicação da lei da oferta e da demanda exigia que o país obtivesse dólares para fazer frente ao aumento de suas importações. Esses dólares não vieram do aumento das exportações, mas sim da entrada de capitais atraídos pelos juros altos, o que fez a dívida interna crescer.
Com seu perfil de curto prazo e títulos pós-fixados ou indexados ao dólar, essa dívida interna é um enorme potencial de demanda recolhida, mas pronta para, em uma crise de confiança, entrar em circulação, provocando um calote e/ou inflação.
Qual a saída? Deve-se alongar o prazo da dívida e aumentar a proporção de títulos prefixados. Essa dívida é administrável, mas, para ter margem de manobra, é preciso que ela não continue mais a crescer em relação ao PIB. Assim, para um superávit fiscal primário (recursos economizados para pagar juros) nulo, a taxa de juros anual não poderia ser maior que o crescimento do PIB. Porém, para uma dívida de 50% do PIB (hoje esse percentual é de 56%), cada ponto percentual de superávit primário permite que os juros reais sejam dois pontos percentuais superiores ao crescimento real. Não é difícil entender por que há banqueiro brasileiro sugerindo que o país obtenha superávits primários de 7% do PIB.
Mas vimos que o que faltou ao Brasil não foram reais no cofre do governo, e sim dólares para financiar sua nova inserção na economia mundial. Por maior que seja o superávit primário, o país continua vulnerável a crises no balanço de pagamentos. Ademais, o superávit primário sacrifica a população através da restrição da oferta de bens e serviços públicos, o que, além de recessivo, é injusto em um país de tantas demandas sociais.
É preciso que o Brasil promova uma nova abertura comercial, a abertura para as exportações. Isso exige políticas públicas onerosas e juros mais baixos. Porém, os resultados não seriam imediatos, o que é perigoso em um país que precisa anualmente de mais de US$ 50 bilhões para financiar seu balanço de pagamentos e que já enfrenta problemas de confiança. É possível, nesse contexto, que ocorram mais depreciação cambial e uma monetização parcial da dívida interna, o que traria pressões inflacionárias.
Talvez a história fosse diferente se a política econômica tivesse sido mudada em 95 ou 96. Como não foi o caso, é preciso fazer uma opção política clara de manter, sim, um superávit primário e o compromisso com o cumprimento dos contratos para não piorar as crises externa e interna. Mas, para alavancar as exportações e voltar a crescer, teremos que provavelmente conviver com uma inflação anual superior a um dígito por algum tempo, até que os conflitos distributivos oriundos do setor externo sejam resolvidos.
O raio de manobra da política econômica é estreito. Mas ao menos um novo consenso político está se formando, afinal até a equipe econômica acredita agora que é preciso política industrial e de exportações. Resta saber qual a calibragem ideal e factível entre superávit primário, inflação aceitável e políticas de redução da vulnerabilidade externa. Ademais, quem teria melhores condições de conduzir a economia pelo fio da navalha a partir de 2003?
Em geral, acredita-se que o candidato do governo enfrentaria menores dificuldades, já que inspiraria maior confiança aos investidores internacionais.
O inusitado, porém, foi John Willianson, um dos expoentes do Consenso de Washington, ter recentemente declarado que, se a oposição vencer e mostrar claramente que não implementará uma política de ruptura, o Brasil conseguiria reduzir o prêmio de risco associado à alternância do poder, o que por si só permitiria uma redução significativa nos juros. A decisão está com o povo brasileiro.


Marcelo Trindade Miterhof, 28, é economista, graduado e mestre pela Unicamp. Foi editorialista da Folha.
E-mail - marcelomiterhof@ uol.com.br.


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