São Paulo, quinta-feira, 22 de julho de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

UE-Mercosul, uma negociação desequilibrada

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Fez bem o Mercosul de suspender as negociações com a União Européia. Na reunião de Bruxelas, os europeus conseguiram o que ninguém acreditava ser possível: piorar a sua proposta de abertura dos mercados agrícolas.
Mesmo antes desse recuo, as ofertas da União Européia para bens agrícolas e agroindustriais deixavam muito a desejar. As cotas oferecidas eram modestas e diziam respeito a apenas alguns produtos. Vários produtos importantes para o Brasil parecem ter ficado inteiramente fora da proposta européia.
Como os entendimentos Mercosul-União Européia vêm transcorrendo com pouca transparência e os documentos da negociação não são de conhecimento público, é impossível chegar a uma avaliação segura dos ganhos e das perdas envolvidos. Porém algumas coisas ficaram claras.
O que está se configurando não é uma área de livre comércio. No que diz respeito ao comércio de mercadorias, um eventual acordo seria flagrantemente desequilibrado. Haveria, por um lado, uma liberalização bastante restrita para a agricultura. Por outro lado, a abertura seria ampla para produtos industriais. Só para bens industriais é que faria sentido falar em livre comércio.
Um acordo desse tipo dificilmente poderá interessar ao Brasil. O nosso ganho potencial com a abertura dos mercados industriais europeus é pequeno. As tarifas de importação aplicadas pela União Européia nessa área já são baixas, em razão dos níveis consolidados na OMC e das preferências concedidas no âmbito do Sistema Geral de Preferências.
Já as empresas industriais européias se beneficiariam consideravelmente do rebaixamento das tarifas mais elevadas aplicadas pelo Mercosul. Diversos segmentos industriais brasileiros teriam provavelmente grande dificuldade de enfrentar a livre competição com as grandes corporações européias.
Os problemas não terminam aí. Assim como a Alca, a negociação com a União Européia vai muito além do comércio de bens. Envolve, também, várias outras áreas de importância estratégica. Por exemplo: serviços, investimentos, compras governamentais e propriedade intelectual, como comentei em artigo publicado nesta coluna no mês passado ("Réquiem para o acordo Mercosul-União Européia?", 17 de junho de 2004). Ainda que a União Européia seja menos ambiciosa do que os EUA, as suas demandas para essas áreas, se aceitas pelo Mercosul, representariam restrições provavelmente graves à formulação de projetos nacionais ou regionais de desenvolvimento.
Pelo que se sabe, os nossos negociadores vinham apresentando, nos últimos meses, concessões sucessivas em serviços, investimentos e, mais recentemente, compras governamentais. A sua esperança era induzir os europeus a melhorar a sua oferta agrícola. Nesta semana, ironicamente, aconteceu o contrário.
Esse esforço do Mercosul era difícil de compreender. Não se pode, obviamente, dissociar as negociações com os europeus das demais negociações em que estamos envolvidos, notadamente as da OMC e da Alca. Desde o início de 2003, o governo brasileiro vem liderando complicada manobra diplomática com o intuito de equilibrar a agenda da Alca. Um dos principais objetivos desse esforço é depurar essa agenda de temas com os quais o Brasil tem dificuldades, entre eles justamente serviços, investimentos e compras governamentais. Por esse e outros motivos, a Alca emperrou.
Mas não vamos nos iludir. Os EUA não abandonaram a Alca. É provável que Washington retome a iniciativa depois das eleições presidenciais, seja com Bush, seja com Kerry. As concessões que o Mercosul fizer à União Européia constituirão o patamar mínimo para as demandas dos EUA.
As negociações com os europeus tendem, portanto, a contaminar a posição do Mercosul em outras negociações, notadamente a da Alca. O efeito poderá ser desastroso se viermos a ceder em temas como bens industriais, serviços, investimentos e licitações públicas, em troca de migalhas na área agrícola.
Vale a pena notar o seguinte: o intrigante silêncio de Washington e da nossa numerosa quinta-coluna sobre a Alca nos meses recentes. Uma explicação possível: estão todos aguardando que a União Européia abra caminho para que, no momento oportuno, os EUA retomem a sua agenda comercial para as Américas.
Segundo Nelson Rodrigues, tudo que é dito uma única vez permanece rigorosamente inédito. Permita-me, leitor, concluir o artigo de hoje com as mesmas palavras que usei na conclusão artigo do dia 17 de junho.
A negociação com a União Européia, assim como a da Alca, é uma grande perda de tempo. Não se percebe bem o que nos move a continuar com essas tratativas. Os benefícios são duvidosos. Há riscos consideráveis para a indústria do país e a autonomia da política econômica.
Melhor faria o Brasil se concentrasse os seus esforços naqueles campos que parecem mais promissores (ou menos problemáticos): as negociações multilaterais na OMC e os acordos comerciais com outros países em desenvolvimento.


Paulo Nogueira Batista Jr., 49, economista e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).
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