São Paulo, domingo, 22 de outubro de 2000

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NOVA CRISE
Crise no vizinho traz incerteza que pressiona o real; desvalorizar ou dolarizar o peso são saídas cambiais difíceis
Tormenta argentina já respinga no Brasil

OSCAR PILAGALLO
DA REPORTAGEM LOCAL

A deterioração do quadro político e econômico na Argentina está fazendo piscar os sinais de alerta no Brasil.
Até meados do ano, a crise da Argentina era uma ameaça remota. Constava dos piores cenários traçados por economistas, mas não dos mais prováveis.
Hoje, as notícias vindas de Buenos Aires já têm impacto negativo no Brasil. Na semana passada, o câmbio fechou pressionado, com o dólar encostando em R$ 1,9, devido, em grande parte, às incertezas vividas pelo maior parceiro comercial do Brasil no Mercosul.
Economistas ouvidos pela Folha concordam que a situação é grave e beira o insustentável. O consenso desaparece, no entanto, quanto às soluções possíveis.
"A Argentina atravessou a ponte algemada e depois a dinamitou", afirma Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda, referindo-se ao sistema cambial de conversilidade adotado no início dos anos 90, que determina a paridade de um dólar por um peso.
O engessamento provocado pelo regime cambial argentino é apontado, unanimemente, como a origem da crise atual.
"A Argentina vive o esgotamento do modelo adotado em 1991", avalia Antônio Corrêa de Lacerda, presidente da Sobeet, sociedade que estuda a ação das multinacionais. "O país está diante de uma armadilha e todas as saídas são traumáticas."
Uma saída seria a desvalorização do câmbio, medida adotada pelo Brasil em janeiro do ano passado e que permitiu a reativação, ainda que modesta, da economia.
É o que defende Paulo Yokota, consultor especialista em economia internacional. "Para que continuar sofrendo de crise em crise? O tumor da Argentina não é incurável, mas tem que ser operado."
Yokota não minimiza os efeitos drásticos que provocariam a flutuação cambial. A dificuldade é até legal, porque a paridade está garantida pela constituição do país. E esse não seria o maior problema a ser enfrentado.
Na Argentina, essa saída poderia se provar tão desastrosa que é descartada pela maioria.
Estima-se que mais de dois terços da dívida pública, superior a US$ 100 bilhões, esteja expressa em dólares. Assim, a desvalorização aumentaria as dívidas (em pesos), provocando quebradeira geral de empresas que não se protegeram para a eventualidade de uma mudança cambial.
No Brasil, para comparar, a desvalorização foi suportada porque uma parcela menor da dívida estava indexada em dólar e porque o governo permitiu, nos meses que precederam a mudança, que todos fizesse "hedge" (ou seja, comprassem dólares ou títulos indexados que neutralizariam o impacto da desvalorização).
Para Eduardo Giannetti da Fonseca, professor da USP, não se trata apenas de o passivo das empresas estar expresso em dólares. "A verdade é que os argentinos têm uma dolarização mental", afirma.
"É uma tragédia no sentido grego, de que um fato (a rigidez do sistema cambial) pré-determina uma sequência desfavorável", diz.
Por causa da conversibilidade a Argentina já sofreu duas fortes recessões. Em 1995, depois da crise cambial do México, o PIB argentino caiu 2,8%. No ano passado, a queda foi ainda maior: 3,1%.
O grande problema do regime cambial rígido é comprometer a competitividade dos produtos argentinos. Como o peso fica tão valorizado quanto o dólar, a mercadoria argentina encarece, principalmente nos países onde as moedas, como o euro, se desvalorizam em relação ao dólar. É esse o processo que leva à recessão.
"Quantas recessões eles podem aguentar?", pergunta Giannetti, concluindo que hoje há claros sinais de "fadiga de material".
Esses sinais estão presentes na crise política, que ameaça a aliança liderada pelo presidente Fernando de la Rúa. Primeiro foram as denúncias de corrupção no Senado. Depois, a renúncia do vice-presidente Carlos Alvarez, insatisfeito com o rumo das apurações. E, na semana passada, os fortes rumores de queda do ministro da Economia, José Luis Machinea.
"Essa crise aumenta a preocupação pois não há ambiente para a Argentina voltar a crescer", afirma Mauro Scheneider, analista do ING Barings. "O mercado acompanha com ansiedade sinais de uma recuperação que, por enquanto, não se materializa." A expectativa para este ano é de um crescimento inferior a 1%, quando o Brasil pode chegar a 4%.
A dolarização -medida radical que teria efeito oposto ao da desvalorização- acentuaria ainda mais a recessão. Por isso, também não é vista como medida provável, ainda que pudesse ter o mérito de reduzir o grau de incerteza.
"Há até uma opção que seria a desvalorização seguida de dolarização, que seria uma maluquice de experimento", diz Giannetti.
O impasse prejudica o Brasil porque a percepção de risco por parte da comunidade financeira internacional se estende aos países emergentes, principalmente se forem parceiros comerciais.
Uma análise do banco Lloyds TSB vê uma única possibilidade de a Argentina superar a crise. Mas ela dependeria de uma combinação de fatores favoráveis: flexibilização da meta fiscal do FMI, que o governo não consegue cumprir; recuperação do euro; manutenção dos juros nos EUA; apoio político ao governo e aumento de produtividade.


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