São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Uma história de amor

RUBENS RICUPERO

Afinal, Tuni e Wladimir Murtinho não terão estado longe um do outro mais que cinco meses. Tuni foi a primeira a partir, no início de julho, após doença que, durante mais de dez anos, a diminuiu de forma implacável e progressiva. Wladi apagou-se serenamente em Brasília, no dia 16, ao ler os jornais, antes do trabalho diário no Ministério da Cultura, único privilégio que se oferecia aos 83 anos.
Ao contrário da chama de Vinícius, o amor deles é eterno, posto que, na sua perfeição, já não pode mais mudar, ficando para sempre "intacto, suspenso no ar". Nem por isso é menos infinito, pois foi mais forte que tudo, mais que a perda devastadora de um filho pequeno e a enfermidade que gradualmente encerrou a companheira numa distância silenciosa, mas não foi capaz de fazer Wladi desistir de tratá-la como se ela tivesse despertado do seu sonho.
Seria preciso falar deles apenas no plural, de tal modo estiveram confundidas suas vidas. É mais fácil, no entanto, escrever sobre Wladimir, pois Tuni era a face lunar, interior, recolhida, que não oferece rugosidade onde possam aderir as palavras. Wladi era homem de ação e mil projetos; deixou tanta coisa realizada que o perigo, em seu caso, é perder-se no inventário das coisas e esquecer o espírito que animava o movimento.
Belos, ricos, elegantes, cultos, talentosos, tinham tudo para dispersar-se na frivolidade de uma existência brilhante. Herdeira de duas aristocracias paulistas, Tuni cresceu com a avó, no casarão que foi depois sede da Faculdade de Arquitetura de São Paulo. Desenhista e gravadora, mais tarde restauradora, suas obras, feitas de encanto e sutileza, são raras, mas quem as vê não esquece.
O pai de Wladimir, legendário embaixador dos velhos tempos, pertencia à família mato-grossense do ministro Joaquim Murtinho. Por parte da mãe, Wladi era neto de don Mauro Fernández, autor da reforma educacional que transformou Costa Rica na nação mais evoluída da América Central.
A história de Wladimir é um romance de aventuras. Teve a infância errante de filho de diplomata. Apreendeu a velejar na Noruega, adquiriu em escola inglesa o hábito de fazer ginástica ritmada com balizas, falava francês e espanhol como línguas maternas. A adolescência, passou-a no Equador, onde o pai, num rompante de "panache", renunciou à carreira diplomática sem ter um centavo, a fim de tomar o partido local no conflito com o Peru. Jovem, apresentou-se ao cônsul-geral em Nova York, pedindo para ser repatriado. No velho navio do Lóide, em troca de lições de francês, estudou português com um dos oficiais, que lhe ensinou, como se fossem de uso diário, expressões do tipo de "fá-lo-ei, enviou-mo". Desembarcado no Rio, aprovado no concurso do Itamaraty, transformou-se quando encontrou Tuni. Juntos viveram, por quase 60 anos, uma história de amor maravilhosa, no sentido de "mirabilia", algo de inexplicável, milagre que se reinventa a cada manhã.
Como todo amor verdadeiro, o deles foi aberto aos outros e atento ao trabalho e ao mundo. Ninguém fez tanto para difundir no exterior a cultura brasileira; neles tiveram origem incontáveis livros, álbuns, filmes sobre o Brasil, sua arquitetura, Brasília, as artes, a cultura popular. Trazem sua marca memoráveis exposições como a Universal de Bruxelas, nos anos 50, as co-edições do Instituto do Livro, do qual Wladimir foi diretor, a série mais recente de "Intérpretes do Brasil".
O casal tinha a vocação de construir casas e grandes amizades, estando sempre rodeado de arquitetos, mestres-de-obras, operários. Amigos de Lúcio Costa e Niemeyer, de Olavo Redig de Campos e Alcides Rocha Miranda, de Bruno Giorgi, Burle Marx, Mary Vieira, andavam constantemente às voltas com iniciativas que se superpunham, pois Wladi acreditava que era preciso lançar dez projetos para ter a esperança de realizar um. Estava, assim, predestinado a construir o Itamaraty de Brasília, tarefa que lhe confiaram sem recursos, com a secreta esperança de que não a levaria a cabo. Era subestimar sua tenacidade e engenho: produziu orçamentos e créditos extraordinários, tirou dinheiro da pedra. Graças à complementação entre o gênio de Niemeyer e a energia esclarecida de Murtinho, conseguiu-se criar o mais belo edifício de Brasília. A nova capital foi o seu "sonho intenso"; deu-se inteiro à cidade, da qual foi secretário de Educação e um pouco de tudo. Sobre ela, não admitia críticas nem descrença. Não gostava, aliás, de falar mal de ninguém, não era homem para destruir ou desprezar, sobretudo quando se tratava do Brasil, do seu povo e da cultura brasileira, que amou profundamente, com a paixão e o deslumbramento dos que só adultos descobriram a pátria.
Com esse espírito construtivo e o olho seguro de arquitetos e jardineiros, Tuni e Wladi criaram à beira do lago "la casa della vita" por excelência. Nela, cada objeto tinha uma história, um sentido, um lugar único. Pintura ou escultura da Índia (onde foram embaixadores), imagens góticas, santos portugueses, máscaras africanas, obras de brasileiros famosos ou anônimos, harmonia na diversidade. A casa, o jardim que Tuni formou, com os beija-flores que alimentava, foram o ponto de encontro para a fogueira de são João, a festa de fim de ano, os almoços de sábado, da gente mais bizarra e contrastante, atraída pelo gosto da beleza e pela magia da amizade. Nunca pensamos que essa maravilhosa história de amor se acabasse, ou melhor, se transferisse a outra dimensão no tempo. Ver como Tuni e Wladi viviam era reaprender a viver a própria vida, a recriar-se de novo, com valores melhores e alma limpa.
Como dói, querido Wladi, saber que já não estás aqui para ajudar-nos a tentar viver, a continuar a dar-nos lições de sabedoria, a afugentar essa tristeza sem remédio, essa mágoa que sufoca. Não gostavas de lamúrias nem de auto-comiseração. Imagino, por isso, que te pareceria bem fechar esse comovido abraço de despedida com a nota de esperança dos versos sem título escritos em 1932 por Fernando Pessoa, que dizem assim:
"A morte é a curva da estrada.
Morrer é só não ser visto.
Se escuto, eu te ouço a passada.
Existir como eu existo.
A terra é feita de céu.
A mentira não tem ninho.
Nunca ninguém se perdeu.
Tudo é verdade e caminho".


Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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