São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 2002

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Os de lá, os de cá e os mercados

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

Nos últimos 20 anos, a inovação financeira assumiu uma velocidade espantosa, acompanhando a desregulamentação dos mercados e a crescente liberalização dos movimentos de capitais entre as principais praças de negócios.
Ao contrário da "globalização financeira" do último quartel do século 19, que instituiu o padrão-ouro e seu sistema de taxas fixas, os países centrais caminharam na direção de um sistema de taxas flutuantes. Tratava-se de escapar das aporias da "trindade impossível", ou seja, da convivência entre taxas fixas, mobilidade de capitais e autonomia da política monetária doméstica. A aceleração das inovações, por sua vez, ganhou força ainda maior quando se ampliou o espectro dos ativos financeiros denominados em moedas distintas -as boas e as más- no portfólio dos investidores globais.
Para os países de moeda conversível, sobretudo para o gestor da moeda central, a política monetária -encarnada num regime de metas de inflação ou algo similar- tornou-se, de fato, o instrumento privilegiado de administração das oscilações da economia.
Mas, na verdade, os bancos centrais e as demais autoridades reguladoras não estão confortáveis diante da intensificação da concorrência nos mercados financeiros e de crédito. Isso vem promovendo uma rápida transformação das práticas de intermediação, dos métodos de avaliação de ativos e dos riscos associados, bem como importantes alterações na hierarquia e no papel das instituições financeiras e monetárias.
Nas economias contemporâneas, a finança direta e "securitizada" ganhou maior importância: a desregulamentação rompeu os diques impostos depois da crise dos anos 30 à ação dos bancos comerciais, que voltaram a operar como supermercados financeiros. Essas transformações ampliaram a possibilidade de ocorrência de bolhas nos mercados de ativos e de crises sistêmicas. Quando os possuidores de riqueza são surpreendidos por movimentos bruscos e não antecipados de preços, as perdas estimadas obrigam à liquidação de posições, ampliando desmesuradamente os riscos de mercado e de liquidez.
Para os países de moeda não conversível, as taxas de juros e de câmbio se tornaram "endógenas" e mais sensíveis às bruscas mudanças de expectativas dos possuidores de riqueza. Não é de espantar que nesse sistema seja mais frequente a ocorrência de problemas de liquidez que dão lugar a amplas flutuações e crashs nos preços dos ativos e das moedas.
O Brasil pode servir de exemplo, como protagonista e vítima da última "bolha global". Na fase 95-98, a entrada líquida de capitais suscitou a expansão concomitante do passivo externo e das reservas, obrigando o Bacen a adotar políticas de esterilização monetária que determinam o crescimento da dívida pública interna. Na fase de saída líquida, as reservas se reduzem, mas os juros sobem, o que engorda o estoque da dívida e promove a dolarização do passivo interno do governo. Essa situação, diga-se, ocorre tanto no regime de câmbio fixo quanto no flutuante. Em ambos os casos, o Banco Central é obrigado a comprar e vender dólares numa tentativa de acalmar o curso do câmbio e impedir um crescimento indesejável da relação dívida/PIB.
O montante relativamente elevado de reservas que o Banco Central deve manter para aparentar uma situação de solvência é um dos sintomas da impossibilidade de adoção da flutuação cambial pura. Como os títulos de riqueza em reais e os denominados em dólares são substitutos muito imperfeitos, o mercado financeiro continua a arbitragem entre juros internos e externos atento ao risco cambial, de liquidez e de solvência, o que impede a convergência das taxas e exige a administração do câmbio.
Ao contrário do que diz a teoria da trindade impossível, o câmbio flutuante daria maior autonomia às políticas monetária e fiscal. Em países com elevado endividamento externo e que não conseguem reduzir de forma significativa o déficit em conta corrente, o câmbio flutuante não elimina o risco cambial e o BC está sempre obrigado a "sujar" as flutuações.
As tendências à apreciação ou depreciação do real dependem, no curto prazo, em condições de abertura financeira, do fluxo e refluxo de capitais internacionais e do maior ou menor descasamento de ativos e passivos em dólar dos bancos, empresas e rentistas sediados no Brasil. Por sua vez, a relação dívida/PIB, adotada como meta com o Fundo Monetário Internacional, varia com as taxas de juros e de câmbio que determinam, em primeira instância, a valorização ou desvalorização de nossa dívida pública em reais e em dólares. Trata-se, portanto, de uma relação volátil, cuja tentativa de redução, convertida em meta com o FMI, torna draconiana a execução da política fiscal. Sua redução, com juros altos, crescimento baixo e elevada necessidade de financiamento externo, exige sempre superávits primários fiscais elevados e o encolhimento relativo, quando não absoluto, dos gastos sociais.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor titular de economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).


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