São Paulo, segunda, 23 de fevereiro de 1998

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OPINIÃO ECONÔMICA
Partos demorados

JOÃO SAYAD

Depois de muitos anos, desci no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro. Fui à zona sul pela Linha Vermelha -literalmente cercada por habitações muito pobres, inacabadas, remendadas e muito feias. Ruas esburacadas de terra, lixo espalhado no chão- um cenário de terror que se estende até o horizonte, interrompido apenas pelo famigerado Morro do Alemão.
O motorista de táxi comenta que volta e meia os traficantes interrompem o trânsito com metralhadoras na mão para transportar "algumas coisas" de um lado para o outro.
Em São Paulo é a mesma coisa. Mas São Paulo é cheia de pudores. Aqui a pobreza se esconde atrás das ondulações suaves do planalto que não permitem as cenas de barbárie explícita que as planícies do Rio mostram.
O presidente afirmou que gostaria de implementar um Plano Real "para o social" no segundo mandato. Será possível?
Como nasceu o Plano Real?
Os avós internacionais do Plano Real foram o presidente Reagan e Paul Volcker, quando aumentaram as taxas de juros e criaram a crise da dívida externa em 1982.
Os avós brasileiros são o MDB, dr. Ulysses Guimarães, o governador Montoro e outros políticos que iniciaram a campanha pelas diretas-já e o processo de democratização do país. A democracia transformou as leis salariais de arrocho em letra morta. Começaram dez anos de superinflação. Terminou o período de combate gradualista.
Foram dez anos de inflação muito alta e dez anos de tentativas de solução. Começamos com o Plano Cruzado. Depois vieram os Planos Bresser, Verão e o cruel e desengonçado Plano Collor.
O Plano Real poderia ter nascido antes se o secretário Baker não tivesse respondido presunçosa e insensivelmente "this is a non starter" ("não tem conversa", seria a tradução em português) para a proposta de securitização da dívida que o ministro Bresser lhe apresentou em 1987.
Só em 1994 o ministro Fernando Henrique Cardoso conseguiu renegociar a dívida externa. A dívida foi securitizada sob o reinado do secretário Brady, que acabou batizando os papéis da dívida externa de "bradies".
Foi um longo e doloroso parto. Os parteiros foram Pérsio Arida, André Lara Rezende e Francisco Lopes, que por dez anos pensavam e escreveram sobre como acabar com a inflação num país com indexação. E a criança nasceu.
Outras crianças e outros planos reais já haviam nascido na Argentina, no Chile e no México. Também fomos dos últimos a abolir a escravidão. Somos conservadores.
A história é assim: antes, o problema precisa aparecer, ser visto, existir. Pode aparecer rapidamente e com clareza. Ou pode exigir muito sofrimento para que seja visto. Depois, é preciso encontrar a solução. Pode ser simples e rápida, ou pode exigir novamente muito sofrimento e crises para que a gente se conforme com a solução proposta.
Poderíamos dizer que os filhos são sempre uma surpresa para os pais. Napoleão não sabia o que estava fazendo, mas destruiu as monarquias da Europa. A depressão de 1930 é mãe do "New Deal" de Franklin Roosevelt e avó das instituições e da prosperidade do pós-guerra.
Será possível sonhar com um plano real para o social?
Para responder, primeiro precisamos responder à pergunta: existe um problema social?
Para que exista, não basta que cientistas sociais ou filósofos digam que exista.
É preciso que a pobreza se torne manchete de jornais, apareça como o problema mais sério nas pesquisas de opinião pública ou destrua candidaturas e crie novas lideranças. Se as elites forem pouco sensíveis ou muito conservadoras e lentas, o nascimento do problema pode exigir revoltas populares, guerra civil ou outras desgraças. Depende da gravidade do problema relativamente à insensibilidade das elites.
Depois, é preciso que exista uma solução. Podemos conhecer o problema e não conhecer a solução. A Aids é um problema de solução difícil.
No caso da inflação, o fato de que a inflação é a maior inimiga do capitalismo ajudou na solução. Mesmo assim, levamos dez anos tentando.
No caso da pobreza, do crime e da barbárie, apesar de aparecerem na Linha Vermelha, continuam escondidos em outros lugares.
A elite brasileira não tem nenhum sentimento de urgência com relação ao problema. As estatísticas falam de diminuição da pobreza.
Além disso, como estamos sempre nos comparando com outros países, está tudo muito bem, pois também existe crime em Chicago, barbárie na Colômbia, assaltos e desemprego em Paris etc.
Mangabeira Unger propôs várias soluções na coluna de terça-feira passada. Ainda nem começamos a experimentar, pois "não temos dinheiro". Não é uma boa resposta. Nem um bom sinal.


João Sayad, 51, economista, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e ex-ministro do Planejamento (governo José Sarney), escreve às segundas-feiras nesta coluna.
E-mail: jsayad@ibm.net



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