São Paulo, segunda, 23 de fevereiro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGO
Contra a privatização do sistema elétrico

JOAQUIM FRANCISCO DE CARVALHO

Se não fosse a carga de dívidas contraídas para satisfazer aos interesses estranhos ao setor, o sistema elétrico paulista daria anualmente um lucro superior aos capitais externos investidos diretamente no Estado em vários anos. Isso pode ser comprovado multiplicando-se o consumo estadual de eletricidade pela diferença entre o custo de geração e a tarifa média de distribuição.
O resultado, que chega a bilhões de dólares por ano, constitui a verdadeira causa da luta de bastidores que atualmente se trava entre grupos estrangeiros pelo controle do referido sistema. E os números ficarão muito mais expressivos, já que as tarifas vão subir e as projeções do governo indicam grandes aumentos no consumo de eletricidade.
A Cesp e a Eletropaulo ainda são estatais; portanto, seus lucros ficam aqui mesmo, sendo em grande parte reinvestidos no aperfeiçoamento tecnológico e na expansão do próprio sistema. Privatizá-las é uma temeridade.
Seria mais inteligente e muito mais honesto que o governo saneasse suas finanças, como fez com os bancos, e as deixasse progredir -sem interferências externas, porém sob rigorosa supervisão dos consumidores, exercida por comissões de controle a ser criadas.
O sentimento de engenheiros e técnicos mais antigos, que contribuíram pessoalmente para o planejamento e a construção de nosso sistema elétrico, é de perplexidade, senão de revolta, contra privatizações arquitetadas por tecnocratas e "promotores de negócios", que não têm competência específica e não merecem confiança. Veja-se o que aconteceu no Rio, onde a Light, privatizada, economiza em manutenção para remeter lucros, degradando os serviços que, aliás, estão mais caros.
De 1879, quando d. Pedro 2º ofereceu incentivos e privilégios para que Thomas Edison introduzisse no Brasil a luz elétrica, até 1960, o sistema elétrico brasileiro foi controlado por empresários nacionais e grupos estrangeiros, sem nenhuma interferência do Estado. Em 1960, os empreendimentos privados no setor, em todo o Brasil, somavam uma capacidade de apenas 3.300 megawatts, o que era insuficiente para alimentar o desenvolvimento da economia.
Assim, atendendo a apelos do próprio empresariado industrial, o Estado investiu gigantescos fundos públicos no sistema para modernizá-lo e ampliá-lo até sua capacidade atual, que é da ordem de 58 mil megawatts. Isso significa que, em 37 anos, o Estado realizou 17 vezes mais do que realizaram em 110 anos os grupos privados.
É importante observar que o sistema paulista, como, aliás, todo o sistema brasileiro, é essencialmente hidrelétrico. E, onde quer que haja represas hidrelétricas, manda o bom senso que o Estado as controle, devido às implicações ambientais de sua exploração, com reflexos até no abastecimento de água potável.
É assim na França, na Suíça, na Noruega, no Canadá ou em qualquer outro país soberano. Mesmo nos Estados Unidos, pátria da iniciativa privada, o governo controla as bacias hidrográficas, e as principais hidroelétricas são estatais.
Cabe lembrar que sistemas hidrelétricos devem ser hidráulica e eletricamente interligados, requerendo operação integrada, coisa que só o Estado pode fazer com eficácia. E não nos esqueçamos de que eletricidade é um monopólio natural, indispensável em todos os campos da atividade humana. Como todos pagam tarifas, o sistema elétrico é um arrecadador automático de parte da renda dos demais setores.
A Cesp e a Eletropaulo, em conjunto, podem arrecadar mais de R$ 9 bilhões por ano. Privatizá-las significa permitir que grupos privilegiados nos vendam a eletricidade gerada em nossos rios, usando para isso usinas hidrelétricas e sistemas de transmissão e distribuição construídos com dinheiro público. Seria, da parte do governo, uma demonstração de total inépcia e, sobretudo, uma grande injustiça. Uma imperdoável traição.
Só nos resta esperar que os políticos paulistas acordem a tempo de seguir o exemplo de mineiros e paranaenses, que tiveram competência, coragem e espírito público para defender o patrimônio dos cidadãos, resistindo às pressões de Brasília e dos "promotores de negócios" para privatizar as empresas estaduais de eletricidade.


Joaquim Francisco de Carvalho, 62, engenheiro do setor elétrico, é consultor para assuntos de energia. Foi coordenador do setor industrial do Ministério do Planejamento (governos Castello Branco, Costa e Silva e diretor da Nuclen Engenharia e Serviços S/A.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.